quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O MÉTODO UTILIZADO POR ALLAN KARDEC PARA CODIFICAR O ESPIRITISMO

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Fábio José lourenço Bezerra

        Como nós, encarnados, podemos conhecer a realidade do mundo espiritual e as leis que o regem, uma vez que este é, de um modo geral, imperceptível para nós?

     A resposta é: pelas comunicações dos Espíritos desencarnados que, percebendo o mundo espiritual, podem nos repassar suas impressões e conhecimentos a respeito dele através dos médiuns. Contudo, não podemos simplesmente aceitar, sem exame rigoroso e muita reflexão, o que vem dos médiuns. Antes, é necessário considerar as seguintes hipóteses:

  • Fraude consciente do médium;
  • Animismo: quando o médium manifestaria conteúdos de sua memória subconsciente e/ ou os pensamentos das pessoas presentes à sessão mediúnica, o que, neste último caso, daria-se através da telepatia, criando ele, involuntariamente, uma espécie de personagem fictício usando essas informações. Há ainda quem considere a possibilidade de o médium captar os pensamentos de qualquer pessoa na Terra ou até em outras esferas do mundo material;
  • Fraude do Espírito comunicante.


         Allan Kardec, quando codificou o Espiritismo, levou em consideração todas as hipóteses acima. Procurou então utilizar-se de toda a cautela e de métodos que as excluíssem.

     Quando soube das mesas girantes, logo imaginou tratar-se de um fenômeno natural, provavelmente regido por forças físicas conhecidas, como a eletricidade ou o magnetismo, porém atuando de forma ainda desconhecida pela humanidade. Depois, ao saber que as mesas davam respostas inteligentes às perguntas dos presentes às sessões, reagiu com um sadio ceticismo. Através da insistência de amigos, resolveu observar o fenômeno por si mesmo, tendo assistido a inúmeras sessões mediúnicas. Após atentas e criteriosas observações, concluiu que a melhor hipótese para explicar os fatos era a da manifestação de inteligências que estavam além da humanidade.

       Vejamos, a esse respeito, as palavras do próprio Kardec, como constam na introdução de "O Livro dos Espíritos":

"[...] O movimento dos objetos é um fato incontestável. A questão está em saber se, nesse movimento, há ou não uma manifestação inteligente e, em caso de afirmativa, qual a origem dessa manifestação.

Não falamos do movimento inteligente de certos objetos, nem das comunicações verbais, nem das que o médium escreve diretamente. Este gênero de manifestações, evidente para os que viram e aprofundaram o assunto, não se mostra, à primeira vista, bastante independente da vontade, para firmar a convicção de um observador novato. Não trataremos, portanto, senão da escrita obtida com o auxílio de um objeto qualquer munido de um lápis, como cesta, prancheta, etc. A maneira pela qual os dedos do médium repousam sobre os objetos desafia, como atrás dissemos, a mais consumada destreza de sua parte no intervir, de qualquer modo, em o traçar das letras. Mas admitamos que a alguém, dotado de maravilhosa habilidade, seja isso possível e que esse alguém consiga iludir o olhar do observador; como explicar a natureza das respostas, quando se apresentam fora do quadro das idéias e conhecimentos do médium? E note-se que não se trata de respostas monossilábicas, porém, muitas vezes, de numerosas páginas escritas com admirável rapidez, quer espontaneamente, quer sobre determinado assunto. De sob os dedos do médium menos versado em literatura, surgem de quando em quando poesias de impecáveis sublimidade e pureza, que os melhores poetas humanos não se dedignariam de subscrever.

O que ainda torna mais estranhos esses fatos é que ocorrem por toda parte e que os médiuns se multiplicam ao infinito. São eles reais ou não? Para esta pergunta só temos uma resposta: vede e observai; não vos faltarão ocasiões de fazê-lo; mas, sobretudo, observai repetidamente, por longo tempo e de acordo com as condições exigidas.

Que respondem a essa evidência os antagonistas? - Sois vítimas do charlatanismo ou joguete  e uma ilusão. Diremos, primeiramente, que a palavra charlatanismo não cabe onde não há  proveito. Os charlatães não fazem grátis o seu ofício. Seria, quando muito, uma mistificação. Mas, por que singular coincidência esses mistificadores se achariam acordes, de um extremo a outro do mundo, para proceder do mesmo modo, produzir os mesmos efeitos e dar, sobre os mesmos assuntos e em línguas diversas, respostas idênticas, senão quanto à forma, pelo menos quanto ao sentido? Como compreender-se que pessoas austeras, honradas, instruídas se prestassem a tais manejos? E com que fim? Como achar em crianças a paciência e a habilidade necessárias a tais resultados? Porque, se os médiuns não são instrumentos passivos, indispensáveis se lhes fazem habilidade e conhecimentos incompatíveis com a idade infantil e com certas posições sociais.

Dizem então que, se não há fraude, pode haver ilusão de ambos os lados. Em boa lógica, a qualidade das testemunhas é de alguma importância. Ora, é aqui o caso de perguntarmos se a Doutrina Espírita, que já conta milhões de adeptos, só os recruta entre os ignorantes? Os fenômenos em que ela se baseia são tão extraordinários que concebemos a existência da dúvida. O que, porém, não podemos admitir é a pretensão de alguns incrédulos, a de terem o monopólio do bom-senso, e que, sem guardarem as conveniências e respeitarem o valor moral de seus adversários, tachem, com desplante, de ineptos os que lhes não seguem o parecer. Aos olhos de qualquer pessoa judiciosa, a opinião das que, esclarecidas, observaram durante muito tempo, estudaram e meditaram uma coisa, constituirá sempre, quando não uma prova, uma presunção, no mínimo, a seu favor, visto ter logrado prender a atenção de homens respeitáveis, que não tinham interesse algum em propagar erros nem tempo a perder com futilidades."

"[...] Resta-nos ainda examinar duas objeções, únicas que realmente merecem este nome, porque se baseiam em teorias racionais. Ambas admitem a realidade de todos os fenômenos materiais e morais, mas excluem a intervenção dos Espíritos.

Segundo a primeira dessas teorias, todas as manifestações atribuídas aos Espíritos não seriam mais do que efeitos magnéticos. Os médiuns se achariam num estado a que se poderia chamar sonambulismo desperto, fenômeno de que podem dar testemunho todos os que hão estudado o magnetismo. Nesse estado, as faculdades intelectuais adquirem um desenvolvimento anormal; o círculo das operações intuitivas se amplia, para além das raias da nossa concepção ordinária. Assim sendo, o médium tiraria de si mesmo e por efeito da sua lucidez tudo o que diz e todas as noções que transmite, mesmo sobre os assuntos que mais estranhos lhe sejam, quando no estado habitual.

Não seremos nós quem conteste o poder do sonambulismo, cujos prodígios observamos, estudando-lhe todas as fases durante mais de trinta e cinco anos. Concordamos em que, efetivamente, muitas manifestações espíritas são explicáveis por esse meio.

Contudo, uma observação cuidadosa e prolongada mostra grande cópia de fatos em que a intervenção do médium, a não ser como instrumento passivo, é materialmente impossível.

Aos que partilham dessa opinião, como aos outros, diremos: “Vede e observai, porque certamente ainda não vistes tudo.” Opor-lhes-emos, em seguida, duas considerações tiradas da própria doutrina deles. Donde veio a teoria espírita? É um sistema imaginado por alguns homens para explicar os fatos? De modo algum. Quem então a revelou? Precisamente esses médiuns cuja lucidez exaltais. Ora, se essa lucidez é tal como a supondes, por que teriam eles atribuído aos Espíritos o que em si mesmos hauriam? Como teriam dado, sobre a natureza dessas inteligências extra-humanas, as informações precisas, lógicas e tão sublimes, que conhecemos? Uma de duas: ou eles são lúcidos, ou não o são. Se o são e se se pode confiar na sua veracidade, não haveria meio de admitir-se, sem contradição, que não estejam com a verdade. Em segundo lugar, se todos os fenômenos promanassem do médium, seriam sempre idênticos num determinado indivíduo; jamais se veria a mesma pessoa usar de uma linguagem disparatada, nem exprimir alternativamente as coisas mais contraditórias. Esta falta de unidade nas manifestações obtidas pelo mesmo médium prova a diversidade das fontes. Ora, desde que não as podemos encontrar todas nele, forçoso é que as procuremos fora dele.

Segundo outra opinião, o médium é a única fonte produtora de todas as manifestações; mas, em vez de extraí-las de si mesmo, como o pretendem os partidários da teoria sonambúlica, ele as toma ao meio ambiente. O médium seria então uma espécie de espelho a refletir todas as idéias, todos os pensamentos e todos os conhecimentos das pessoas que o cercam; nada diria que não fosse conhecido, pelo menos, de algumas destas.

Não é lícito negar-se, e isso constitui mesmo um princípio da doutrina, a influência que os assistentes exercem sobre a natureza das manifestações. Esta influência, no entanto, difere muito da que supõem existir, e, dela à que faria do médium um eco dos pensamentos daqueles que o rodeiam, vai grande distância, porquanto milhares de fatos demonstram o contrário. Há, pois, nessa maneira de pensar, grave erro, que uma vez mais prova o perigo das conclusões prematuras. Sendo-lhes impossível negar a realidade de um fenômeno que a ciência vulgar não pode explicar e não querendo admitir a presença dos Espíritos, os que assim opinam o explicam a seu modo. Seria especiosa a teoria que sustentam, se pudesse abranger todos os fatos. Tal, entretanto, não se dá. Quando se lhes demonstra, até à evidência, que certas comunicações do médium são completamente estranhas aos pensamentos, aos conhecimentos, às opiniões mesmo de todos os assistentes, que essas comunicações freqüentemente são espontâneas e contradizem todas as idéias preconcebidas, ah! eles não se embaraçam com tão pouca coisa. Respondem que a irradiação vai muito além do círculo imediato que nos envolve; o médium é o reflexo de toda a Humanidade, de tal sorte que se as inspirações não lhe vêm dos que se acham a seu lado, ele as vai beber fora, na cidade, no país, em todo o globo e até nas outras esferas.

Não me parece que em semelhante teoria se encontre explicação mais simples e mais provável que a do Espiritismo, visto que ela se baseia numa causa bem mais maravilhosa. A idéia de que seres que povoam os espaços e que, em contacto conosco, nos comunicam seus pensamentos, nada tem que choque mais a razão do que a suposição dessa irradiação universal, vindo, de todos os pontos do Universo, concentrar-se no cérebro de um indivíduo.

Ainda uma vez, e este é o ponto capital sobre que nunca insistiremos bastante: a teoria sonambúlica e a que se poderia chamar refletiva foram imaginadas por alguns homens; são opiniões individuais, criadas para explicar um fato, ao passo que a Doutrina dos Espíritos não é de concepção humana. Foi ditada pelas próprias Inteligências que se manifestam, quando ninguém disso cogitava, quando até a opinião geral a repelia. Ora, perguntamos, onde foram os médiuns beber uma doutrina que não passava pelo pensamento de ninguém na Terra? Perguntamos ainda mais: por que estranha coincidência milhares de médiuns espalhados por todos os pontos do globo terráqueo, e que jamais se viram, acordaram em dizer a mesma coisa? Se o primeiro médium que apareceu na França sofreu a influência de opiniões já aceitas na América, por que singularidade foi ele buscá-las a 2.000 léguas além-mar e no seio de um povo tão diferente pelos costumes e pela linguagem, em vez de as tomar ao seu derredor? Também ainda há outra circunstância em que não se tem atentado muito. As primeiras manifestações, na França, como na América, não se verificaram por meio da escrita nem da palavra, e, sim, por pancadas concordantes com as letras do alfabeto e formando palavras e frases. Foi por esse meio que as inteligências, autoras das manifestações, se declararam Espíritos. Ora, dado se pudesse supor a intervenção do pensamento dos médiuns nas comunicações verbais ou escritas, outro tanto não seria lícito fazer-se com relação às pancadas, cuja significação não podia ser conhecida de antemão.

Poderíamos citar inúmeros fatos que demonstram, na inteligência que se manifesta, uma individualidade evidente e uma absoluta independência de vontade. Recomendamos, portanto, aos dissidentes, observação mais cuidadosa e, se quiserem estudar bem, sem prevenções, e não formular conclusões antes de terem visto tudo, reconhecerão a impotência de sua teoria para tudo explicar. Limitar-nos-emos a propor as questões seguintes: Por que é que a inteligência que se manifesta, qualquer que ela seja, recusa responder a certas perguntas sobre assuntos perfeitamente conhecidos, como, por exemplo, sobre o nome ou a idade do interlocutor, sobre o que ele tem na mão, o que fez na véspera, o que pensa fazer no dia seguinte, etc.? Se o médium fosse o espelho do pensamento dos assistentes, nada lhe seria mais fácil do que responder.

A esse argumento retrucam os adversários, perguntando, a seu turno, por que os Espíritos, que devem saber tudo, não podem dizer coisa tão simples, de acordo com o axioma: Quem pode o mais pode o menos, e daí concluem que não são os Espíritos os que respondem. Se um ignorante ou um zombador, apresentando-se a uma douta assembléia, perguntasse, por exemplo, por que é dia às doze horas, acreditará alguém que ela se daria o incômodo de responder seriamente e fora lógico que, do seu silêncio ou das zombarias com que pagasse ao interrogante, se concluísse serem todos os seus membros? Ora, exatamente porque os Espíritos são superiores, é que não respondem a questões ociosas ou ridículas e não consentem em ir para a berlinda; é por isso que se calam ou declaram que só se ocupam com coisas sérias.

Perguntaremos, finalmente, por que é que os Espíritos vêm e vão-se, muitas vezes em dado momento e, passado este, não há pedidos, nem súplicas que os façam voltar? Se o médium obrasse unicamente por impulsão mental dos assistentes, é claro que, em tal circunstância, o concurso de todas as vontades reunidas haveria de estimular-lhe a clarividência. Desde, portanto, que não cede ao desejo da assembléia, corroborado pela própria vontade dele, é que o médium obedece a uma influência que lhe é estranha e aos que o cercam, influência que, por esse simples fato, testifica da sua independência e da sua individualidade."

         Kardec utilizou-se de vários médiuns, distantes entre si, que se desconheciam e não estavam sob a mesma influência de conhecimentos prévios, que pudessem influenciar as respostas. Confrontando as diferentes comunicações, veio à luz a primeira edição de “O Livro dos Espíritos”, em 1857, com cerca de 500 perguntas feitas aos Espíritos e suas respectivas respostas, selecionadas pela concordância entre si e pelo seu conteúdo coerente, racional. Ele também estava atento às notícias de manifestações de Espíritos que estavam ocorrendo nas mais diferentes partes do mundo naquela época.  Alguns anos depois,  "O Livro dos Espíritos" foi revisado pelos Espíritos e ampliado, chegando às 1019 perguntas que conhecemos atualmente.

         O codificador não apenas se utilizou dos conhecimentos trazidos pelos Espíritos Superiores, que faziam uma síntese das Leis que regem o mundo espiritual. Também aprendeu com as comunicações de Espíritos em diferentes graus evolutivos, como alguém que, procurando verificar por si mesmo o que consta em livros de geografia sobre determinado país, vai entrevistar pessoalmente seus habitantes e comprovar o que aprendeu na teoria.

         Vejamos o que disse Kardec na segunda parte do livro "Obras Póstumas":

"[...] Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método da experimentação; jamais ocasionei teorias preconcebidas: observava atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos procurava remontar às causas, pela dedução e o encadeamento lógico dos fatos, não admitindo uma explicação como válida senão quando podia resolver todas as dificuldades da questão. Foi assim que sempre procedi em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos. Compreendi, desde logo, a seriedade da exploração que iria empreender; entrevi, nesses fenômenos,  a chave do problema, tão obscuro e tão controverso, do passado e do futuro da Humanidade, a solução do que havia procurado em toda a minha vida; era, em uma palavra, toda uma revelação nas ideias e nas crenças; seria preciso, pois, agir com circunspecção, e não levianamente; ser positivo e não idealista, para não se deixar iludir.

Um dos primeiros resultados de minhas observações foi que os Espíritos, não sendo outros senão as almas dos homens, não tinham a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que o seu saber estava limitado ao grau de seu adiantamento, e que a sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião pessoal. Essa verdade, reconhecida desde o princípio, me preservou do grande escolho de crer em sua infalibilidade, e me impediu de formular teorias prematuras sobre o dizer de um só ou de alguns.
Só o fato da comunicação com os Espíritos, seja o que for que se possa dizer, provava a existência do mundo invisível ambiente; era já um ponto capital, um campo imenso aberto à nossa exploração, a chave de uma multidão de fenômenos inexplicados; o segundo ponto, não menos importante, era o de conhecer o estado desse mundo, seus costumes, podendo-se assim se exprimir; vi logo que, cada Espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, dele me desvendava uma fase, absolutamente como se chega a conhecer o estado de um país interrogando os habitantes de todas as classes e de todas as condições, cada um podendo nos ensinar alguma coisa, e nenhum, individualmente, não podendo nos ensinar tudo; cabe ao observador formar o conjunto com a ajuda de documentos recolhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e controlados uns pelos outros. Agi, pois, com os Espíritos, como o teria feito com os homens; foram para mim, desde o menor ao maior, meios de me informar, e não reveladores predestinados.

Tais foram as disposições com as quais empreendi, e sempre persegui os meus estudos espíritas; observar, comparar e julgar, tal foi a regra constante que segui.

Até as sessões na casa do Sr. Baudin, não tivera nenhum objetivo determinado; comecei ali a procurar resolver os problemas que me interessavam do ponto de vista da filosofia, da psicologia e da natureza do mundo invisÌvel; chegava a cada sessão com uma série de perguntas preparadas, e metodicamente arrumadas; elas eram sempre respondidas com precisão, profundidade, e de maneira lógica. Desde esse momento as reuniões tiveram um outro caráter; entre os assistentes se encontravam pessoas sérias que por elas tomaram um vivo interesse, e se me ocorria de ali faltar, estava-se como inativo; as perguntas fúteis perderam seu atrativo para a maioria. De início, não tivera em vista senão a minha própria instrução; mais tarde, quando vi que isso formava um conjunto e tomava as proporções de uma doutrina, tive o pensamento de publicá-las para a instrução de todo o mundo. Foram as mesmas perguntas que, sucessivamente desenvolvidas e completadas, fizeram a base de O Livro dos Espíritos.
No ano seguinte, em 1856, segui ao mesmo tempo as reuniıes espíritas que se tinham na rua Tiquetone, na casa do Sr. Roustan e Srta. Japhet, sonâmbula. Essas reuniões eram sérias e mantidas com ordem. As comunicações ocorriam por intermédio da Srta. Japhet, médium, com a ajuda de uma cesta de bico.

Meu trabalho estava em grande parte terminado, e tomava as proporções de um livro, mas pretendia fazê-lo controlado por outros Espíritos, com a ajuda de diferentes médiuns. Tive o pensamento de fazê-lo um motivo de estudos para as reuniões do Sr. Roustan; ao cabo de algumas sessões, os Espíritos disseram que preferiam revê-lo na intimidade, e me assinalaram, para esse efeito, certos dias para trabalhar, em particular, com a Srta. Japhet, a fim de fazê-lo com mais calma e também para evitar as indiscrições e os comentários prematuros do público.

Não me contentava com essa verificação; os Espíritos dela me fizeram a recomendação. As circunstâncias, tendo me colocado em relação com outros médiuns, cada vez que a ocasião se apresentava, disso aproveitava para propor algumas das questões que me pareciam as mais espinhosas.

Foi assim que mais de dez médiuns prestaram a sua assistência para esse trabalho. Foi da comparação e da fusão de todas essas respostas coordenadas, classificadas, e muitas vezes refundidas no silêncio da meditação, que formei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, que apareceu a 18 de abril de 1857.

Até o fim desse mesmo ano, as duas senhoritas Baudin se casaram; as reuniões não mais ocorreram, e a família se dispersou. Mas, então, as minhas relações começaram a se estender, e os Espíritos multiplicaram, para mim, os meios de instrução para os meus trabalhos ulteriores." 

Um método importantíssimo, utilizado por Allan Kardec na codificação, e que deve ser observado por todos os espíritas, foi o Controle universal do ensino dos Espíritos, sobre o qual ele escreveu na introdução de "O Evangelho Segundo o Espiritismo":

"Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Se os Espíritos que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita, quando muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria sectários, mas nunca chegaria a congregar todo o mundo.

Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu, pois, os Espíritos de levá-la de um pólo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem conferir a ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e para todos. Ao demais, pode fazer-se que desapareça um homem; mas não se pode fazer que desapareçam as coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem queimar os Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina não deixaria de conservar-se inexaurível, pela razão mesma de não estar na Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se nela. Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja atuação a todos atinge e aos quais ninguém pode atingir.

São, pois, os próprios Espíritos que fazem a propagação, com o auxílio dos inúmeros médiuns que, também eles, os Espíritos, vão suscitando de todos os lados. Se tivesse havido unicamente um intérprete, por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido.

Qualquer que fosse a classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido objeto das prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado, ao passo que os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos os povos, a todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O Espiritismo não tem nacionalidade e não faz parte de nenhum  culto existente; nenhuma classe social o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus parentes e amigos de além-túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa conduzir todos os homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as dissensões, em vez de apaziguá-las.

Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação. Enquanto a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da imprensa, levaria séculos para chegar ao conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos os recantos do planeta, proclamando os mesmos princípios e transmitindo-os aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não teme o malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos.

Não é essa, porém, a única vantagem que lhe decorre da sua excepcional posição. Ela lhe faculta inatacável garantia contra todos os cismas que pudessem provir, seja da ambição de alguns, seja das contradições de certos Espíritos. Tais contradições, não há negar, são um escolho; mas que traz consigo o remédio, ao lado do mal.

Sabe-se que os Espíritos, em virtude da diferença entre as suas capacidades, longe se acham de estar, individualmente considerados, na posse de toda a verdade; que nem a todos é dado penetrar certos mistérios; que o saber de cada um deles é proporcional à sua depuração; que os Espíritos vulgares mais não sabem do que muitos homens; que entre eles, como entre estes, há presunçosos e sofômanos, que julgam saber o que ignoram; sistemáticos, que tomam por verdades as suas idéias; enfim, que só os Espíritos da categoria mais elevada, os que já estão completamente desmaterializados, se encontram despidos das idéias e preconceitos terrenos; mas, também é sabido que os Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes que lhes não pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação a tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.

O primeiro exame comprobativo é, pois, sem contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura. Incompleto, porém, ficará esse exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de certas pessoas e das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões como juizes únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que não depositam confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da maioria e tomar por guia a opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em face do que digam os Espíritos, que são os primeiros a nos fornecer os meios de consegui-lo.

A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois, a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições. A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns, num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.

Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.

Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações referentes a interesses secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos da doutrina. Prova a experiência que, quando um principio novo tem de ser enunciado, isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo.

Se, portanto, aprouver a um Espírito formular um sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas idéias e com exclusão da verdade, pode ter-se a certeza de que tal sistema conservar-se-á circunscrito e cairá, diante das instruções dadas de todas as partes, conforme os múltiplos exemplos que já se conhecem. Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os sistemas parciais que surgiram na origem do Espiritismo, quando cada um explicava à sua maneira os fenômenos, e antes que se conhecessem as leis que regem as relações entre o mundo visível e o mundo invisível.

Essa a base em que nos apoiamos, quando formulamos um principio da doutrina. Não é porque esteja de acordo com as nossas idéias que o temos por verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro supremo da verdade e a ninguém dizemos: "Crede em tal coisa, porque somos nós que vo-lo dizemos." A nossa opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de uma opinião pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto não nos considerarmos mais infalível do que qualquer outro. Também não é porque um principio nos foi ensinado que, para nós, ele exprime a verdade, mas porque recebeu a sanção da concordância.

Na posição em que nos encontramos, a receber comunicações de perto de mil centros espiritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra, achamo-nos em condições de observar sobre que principio se estabelece a concordância. Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará em novos campos que o Espiritismo terá de explorar.

Porque, estudando atentamente as comunicações vindas tanto da França como do estrangeiro, reconhecemos, pela natureza toda especial das revelações, que ele tende a entrar por um novo caminho e que lhe chegou o momento de dar um passo para diante. Essas revelações, feitas muitas vezes com palavras veladas, hão freqüentemente passado despercebidas a muitos dos que as obtiveram. Outros julgaram-se os únicos a possui-las. Tomadas insuladamente, elas, para nós, nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime gravidade. Depois, chegado o momento de serem entregues à publicidade, cada um se lembrará de haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse movimento geral, que observamos e estudamos, com a assistência dos nossos guias espirituais, é que nos auxilia a julgar da oportunidade de fazermos ou não alguma coisa.

Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade. O que deu lugar ao êxito da doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns foi que em toda a parte todos receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do que esses livros contêm. Se de todos os lados tivessem vindo os Espíritos contradizê-la, já de há muito haveriam aquelas obras experimentado a sorte de todas as concepções fantásticas. Nem mesmo o apoio da imprensa as salvaria do naufrágio, ao passo que, privadas como se viram desse apoio, não deixaram elas de abrir caminho e de avançar celeremente. E que tiveram o dos Espíritos, cuja boa vontade não só compensou, como também sobrepujou o malquerer dos homens. Assim sucederá a todas as idéias que, emanando quer dos Espíritos, quer dos homens, não possam suportar a prova desse confronto, cuja força a ninguém é lícito contestar.

Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob qualquer título, um livro em sentido contrário; suponhamos mesmo que, com intenção hostil, objetivando desacreditar a doutrina, a malevolência suscitasse comunicações apócrifas; que influência poderiam exercer tais escritos, desde que de todos os lados os desmentissem os Espíritos? E com a adesão destes que se deve garantir aquele que queira lançar, em seu nome, um sistema qualquer. Do sistema de um só ao de todos, medeia a distancia que vai da unidade ao infinito. Que poderão conseguir os argumentos dos detratores, sobre a opinião das massas, quando milhões de vozes amigas, provindas do Espaço, se façam ouvir em todos os recantos do Universo e no seio das famílias, a infirmá-los? A esse respeito já não foi a teoria confirmada pela experiência? Que é feito das inúmeras publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo? Qual a que, sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a questão desse ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um contou consigo, sem contar com os Espíritos.

O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo a vontade. Quem quer que tentasse desviá-lo do seu providencial objetivo, malsucedido se veria, pela razão muito simples de que os Espíritos, em virtude da universalidade de seus ensinos, farão cair por terra qualquer modificação que se divorcie da verdade.

De tudo isso ressalta uma verdade capital: a de que aquele que quisesse opor-se à corrente de idéias estabelecida e sancionada poderia, é certo, causar uma pequena perturbação local e momentânea; nunca, porém, dominar o conjunto, mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro.

Também ressalta que as instruções dadas pelos Espíritos sobre os pontos ainda não elucidados da Doutrina não constituirão lei, enquanto essas instruções permanecerem insuladas; que elas não devem, por conseguinte, ser aceitas senão sob todas as reservas e a título de esclarecimento.

Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se julgue conveniente publicá-las, importa não as apresentar senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém, carecendo sempre de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida.

Com extrema sabedoria procedem os Espíritos superiores em suas revelações. Não atacam as grandes questões da Doutrina senão gradualmente, à medida que a inteligência se mostra apta a compreender verdade de ordem mais elevada e quando as circunstâncias se revelam propicias à emissão de uma idéia nova. Por isso é que logo de principio não disseram tudo, e tudo ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos muito afoitos, que querem os frutos antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo pretender adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada coisa, porque, então, os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a verdade, a tudo respondem; daí vem que, sobre todas as questões prematuras, há sempre respostas contraditórias.

Os princípios acima não resultam de uma teoria pessoal: são conseqüência forçada das condições em que os Espíritos se manifestam. E evidente que, se um Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto milhões de outros dizem o contrário algures, a presunção de verdade não pode estar com aquele que é o único ou quase o único de tal parecer. Ora, pretender alguém ter razão contra todos seria tão ilógico da parte dos Espíritos, quanto da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente ponderados, se não se sentem suficientemente esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo absoluto; declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que se aguarde a confirmação.

Por grande, bela e justa que seja uma idéia, impossível é que desde o primeiro momento congregue todas as opiniões. Os conflitos que daí decorrem são conseqüência inevitável do movimento que se opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e convém se produzam desde logo, para que as idéias falsas prontamente sejam postas de lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem qualquer temor podem ficar perfeitamente tranqüilos: todas as pretensões insuladas cairão, pela força mesma das coisas, diante do enorme e poderoso critério da concordância universal.

Não será à opinião de um homem que se aliarão os outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não será um homem, nem nós, nem qualquer outro que fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito que se venha impor a quem quer que seja: será a universalidade dos Espíritos que se comunicam em toda a Terra, por ordem e eus. Esse o caráter essencial da Doutrina Espírita; essa a sua força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei assentasse em base inamovível e por isso não lhe deu por fundamento a cabeça frágil de um só.

Diante de tão poderoso areópago, onde não se conhecem corrilhos, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem nações, é que virão quebrar-se todas as oposições, todas as ambições, todas as pretensões à supremacia individual; é que nos quebraríamos nós mesmos, se quiséssemos substituir os seus decretos soberanos pelas nossas próprias idéias. Só Ele decidirá todas as questões litigiosas, imporá silêncio às dissidências e dará razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo de todas as vozes do Céu, que pode a opinião de um homem ou de um Espírito? menos do que a gota d’água que se perde no oceano, menos do que a voz da criança que a tempestade abafa.

A opinião universal, eis o juiz supremo, o que se pronuncia em última instância.

Formam-na todas as opiniões individuais. Se uma destas é verdadeira, apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é falsa, não pode prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o orgulho humano.

Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar todas as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão recebido a missão de se fazerem ouvir, para congregar os homens sob a mesma bandeira, uma vez que o campo se ache suficientemente lavrado. Enquanto isso se não dá, aquele que flutue entre dois sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a opinião geral; essa será a indicação certa do sentido em que se pronuncia a maioria dos Espíritos, nos diversos pontos em que se comunicam, e um sinal não menos certo de qual dos dois sistemas prevalecerá."


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. 

_____________. Obras póstumas.

_____________. O evangelho segundo o Espiritismo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A CONTRIBUIÇÃO ESPÍRITA NO DEBATE DA ESCOLA PÚBLICA NO BRASIL

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Dora Incontri

A participação histórica do espiritismo no Brasil tem sido desconsiderada em estudos acadêmicos, apesar de já estarem catalogadas na Capes pelo menos 35 dissertações e teses, que fazem alguma referência ao espiritismo entre nós. São estudos, porém, que permanecem desconhecidos e sem divulgação entre os pesquisadores. Trata-se por isso de uma necessidade de resgate histórico promover a descoberta dessa porção ativa da sociedade brasileira, suas raízes ideológicas e seus posicionamentos sociais e políticos.

No campo da educação, minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo se ocupou em mostrar as longínquas raízes do pensamento pedagógico espírita (desde Sócrates e Platão, passando por Comenius, Rousseau e Pestalozzi) e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento desse pensamento no Brasil e sua interação com nossa cultura.i Nesse ponto, o engajamento dos espíritas na defesa da escola pública foi um dos temas analisados rapidamente, já que se tratava de fornecer um panorama geral da história, da filosofia e da prática da pedagogia espírita. Aqui porém, farei uma revisão do assunto, indicando alguns pontos nevrálgicos que podem ser mais desenvolvidos em futuras pesquisas.

Os antecedentes históricos

Em 1828, com apenas 24 anos, Hippolyte Léon Denizard Rivail (futuramente Allan Kardec), assinando suas obras como discípulo de Pestalozzi, escreve um texto que ainda hoje mantém aspectos interessantes: Plano proposto para a melhoria da educação pública. Seguindo a inspiração pestalozziana, Rivail desenvolve duas idéias básicas: a proposta de uma educação integral e a necessidade de se fazer uma ciência pedagógica, enfatizando a formação do professor, embora também alerte para o fato de que a educação transcende o conhecimento científico, sendo uma arte e uma vocação. Dizia ele que “a meta da educação consiste no desenvolvimento simultâneo das faculdades morais, físicas e intelectuais” (RIVAIL, 1997:15) E que: “os meios para se educar a juventude são uma ciência bem distinta que se deveria estudar para ser educador” (RIVAIL, 1997:13).
Assim, inaugurava Rivail, muito antes de se dedicar ao estudo dos fenômenos chamados espíritas, uma linha de procedimento que os adeptos do espiritismo seguiriam depois, que aliás descende diretamente de Comenius e Pestalozzi. Poderíamos resumir essa proposta no seguinte: trata-se de defender a escola pública como um cenário possível para a realização de uma educação que lide com todas as dimensões humanas – e não apenas a cognitiva. Um cenário de experimentação e de formação. Mesmo pública, a educação não poderia ser apenas instrução.

Deveria ser educação dos sentimentos, do intelecto e da ação (como queria Pestalozzi, educação do coração, da cabeça e das mãos). Mesmo pública, os professores deveriam ser altamente preparados e conscientes de sua missão social e humana. Só usamos a palavra restritiva mesmo pública, a partir da realidade da escola pública que conhecemos hoje, onde nem o aspecto parcial da cognição é atingido satisfatoriamente. Pois a escola que vemos está muito longe de como a idealizava Comenius:

“Toda escola pública deve se tornar: 1) uma casa pública de saúde, onde os alunos aprenderão a viver em boa saúde; 2) um parque público, onde treinarão sua agilidade e vigor, que será útil para a toda a vida; 3) a casa das luzes, onde suas mentes se iluminarão com a luz do conhecimento; 4) a casa da oratória, onde todos aprenderão o uso da linguagem e das palavras; 5) um lugar de trabalho, onde ninguém viverá (e nem depois na vida) como os grilos do campo, desperdiçando o tempo em cantilenas, mas como formigas sempre operosas; 6) uma oficina da virtude, em que todos os membros da escola aprenderão as virtudes mais refinadas; 7) a imagem da vida civil, onde todos aprenderão a serem governados e a governar por sua vez, como num Estado em miniatura, e assim aprendendo desde a infância a governar as coisas, a si mesmos e aos outros; 8) e finalmente uma representação de Igreja, onde (…) aprenderão a sabedoria sobre Deus e a reverência pelo divino. Assim, deverão diariamente (…) ser ensinados na fé e iniciados em diferentes doutrinas religiosas. E afinal, devo mencionar os exercícios, pois em todas as escolas públicas, tudo deve estar vivo por exemplos e práticas, pois é o caminho mais curto e eficiente para a aprendizagem.” (COMENIUS, 1965:125)

Como se vê, para Comenius, todos os aspectos do homem deveriam ser trabalhados na educação pública, inclusive o religioso (de forma ecumênica) e o político (de forma participativa), com métodos sempre ativos.

Foi exatamente nesse parâmetro de raciocínio, que nasceu a escola laica, obrigatória e gratuita. A laicidade era uma forma de oposição ao predomínio católico na educação, mas não significava desprezo pela dimensão moral e espiritual do ser humano. Pestalozzi, por exemplo, realizava no Instituto de Yverdon uma educação pluralista (completamente inédita na época), mas sem perda desses aspectos.

Ora, uma informação no mínimo curiosa, mas nem um pouco surpreendente para quem está seguindo esse fio da história é que o movimento iniciado na França em prol da escola pública foi feito predominantemente por espíritas. É um pesquisador francês que nos informa:

“A Liga parisiense de Ensino foi fundada por seis militantes laicos: Jean Macé, Camille Flamarion, Emmanuel Vauchez, Alexandre Delanne, Pierre-Gaëtan Leymarie e André Vautier. Ora, fora Jean Macé, todos são espíritas, e a própria associação tem sua sede no domicílio de Leymarie, sucessor de Kardec (…). Assim, os pioneiros do que vai se tornar em 1881 a Liga Francesa de Ensino, são em sua maioria espíritas, que com a sua própria doutrina, lutam pela instrução gratuita, laica e obrigatória.” (AUBRÉE & LAPLANTINE, 1990: 75)ii

Essa militância, como Laplantine percebeu, não é fruto de uma conjunção aleatória de pontos de vista afins. A idéia da educação está visceralmente ligada ao espiritismo. Fundado por um educador, herdeiro das visões pedagógicas de Rousseau e Pestalozzi, o projeto espírita não é uma proposta salvacionista. A idéia da reencarnação enfatiza a autonomia humana, no processo permanente de evolução – leia-se auto-educação – e a responsabilidade individual ante o progresso coletivo, que implica em mudanças sociais e reformas educacionais. Assim, “a educação está no centro do espiritismo” (AUBRÉE & LAPLANTINE, 1990: 79)

A gratuidade e a obrigatoriedade são necessariamente componentes de qualquer idéia que pretenda contribuir para a evolução social, através da promoção cultural, política e econômica das classes populares. Pois somente através do acesso irrestrito à educação é que os indivíduos e as classes, as comunidades e os povos poderão de fato participar na gestão do próprio destino.

Esse discurso, de conotação claramente iluminista – mas que, como vimos remonta a Comenius, o educador universalista, pacificista e ecumênico do século XVII – encontra uma especificidade inédita no espiritismo – que é o de estender a idéia não apenas a toda a humanidade, mas projetá-la no tempo, pela transcendência dos indivíduos que vão e vem ao cenário da vida, atravavés da reencarnação.

Outra característica toda própria desse discurso, apesar de já se encontrar ela presente em Rousseau e Pestalozzi, é o de considerar a transcendência humana, ou seja, a dimensão espiritual do ser, como um terreno de encontro de várias doutrinas e religiões. Dessa forma, trata-se de um espiritualismo assumido, que não se pretende um proselitismo particularista. Como veremos, isso se manifesta numa pedagogia que leva em consideração o aspecto religioso do homem e das culturas, mas não se faz confessional e doutrinante, dogmática e proselitista.

Há ainda que se ressaltar o caráter igualitário de tal vertente, em primeiro lugar, manifestado no próprio impulso de lutar pelo acesso de todos à educação. Em segundo, promovendo a educação feminina, de forma bastante precoce historicamente. Rivail, já nas primeiras décadas do século XIX, debate o problema da educação da mulher e engaja-se praticamente nessa campanha, coadjuvado por sua esposa Amélie Boudet, igualmente educadora. Mais tarde, Kardec, adotará em nome do espiritismo, a reivindicação pelo voto feminino e por participação das mulheres em atividades antes adstritas aos homens. Na Revista Espírita, ele saúda qualquer notícia da época que mostre avanço da luta feminina por maior espaço de atuação social.

Da mesma forma, o combate a qualquer forma de discriminação racial e religiosa também já está presente desde o primeiro Rivail, encontrando fortes reflexos no Brasil.iii

Os educadores espíritas brasileiros

Ao longo do século XX, iniciando-se na primeira década, com o marco histórico da fundação do primeiro colégio espírita do Brasil – Colégio Allan Kardec – pelo educador mineiro Eurípedes Barsanulfo (1880-1918) e alcançando a dobra do século XXI, diversas propostas foram teorizadas e postas em prática, envolvendo a relação educação/espiritismo.

Algumas tomadas de posição mais significativas diante dos problemas fundamentais com que nos defrontamos historicamente, podem fornecer um quadro aproximado do papel do espiritismo em nossa sociedade.

Em primeiro lugar, é preciso considerar que existem claramente duas tendências no movimento espírita brasileiro: a mais popular, que se tornou massa crítica nas últimas décadas, sob influência da liderança de Chico Xavier, praticada na maior parte dos centros espíritas e nas obras sociais que levam o rótulo de espírita, tem um perfil politicamente conservador e socialmente assistencialista. Realizando quase um sincretismo com a herança católica, essa tendência é criticada pela outra face do espiritismo brasileiro, representada entre outros pelo jornalista e filósofo J. Herculano Pires:

“O católico, o protestante, o espírita se esquivalem neste sentido, todos buscam o caminho do espírito para soluções de questões imediatistas ou para garantirem a si mesmos uma situação melhor depois da morte. A maioria absoluta dos espiritualistas está sempre disposta a investir (esse é o termo exato) em obras assistenciais, mas revela o maior desinteresse pelas obras culturais. Apegam-se os religiosos de todos os matizes à tábua da salvação da caridade material…” (PIRES, 1975)

A outra tendência está mais enraizada na tradição francesa, aquela mesma do século de Kardec, em que espíritas militavam socialmente, em sintonia com as doutrinas mais progressistas da época. É nessa vertente que se inserem os educadores que se empenharam por propostas de fato alternativas de educação. É claro que a dialética não nos aconselha a enxergar os fatos de forma maniqueísta e as contradições fazem parte da natureza das coisas. Os assistencialistas também praticam educação. Às vezes não exatamente da maneira como gostariam os que estão mais à esquerda do movimento. Mas, às vezes, também se inspirando propriamente nestes. E estes, por outro lado, nem sempre conseguiram levar à praxis aquilo que idealizaram.

Aqui, propomos rastrear rapidamente algumas posições dos que se põe na vanguarda.

Diante do conflito escola privada versus escola pública, os espíritas (e aí se incluem todos) têm adotado duas posturas predominantes: lutam sempre que possível e necessário pela escola pública e fundam escolas próprias, mas em geral gratuitas, ou pelo menos, majoritariamente gratuitas. Raras escolas destas são confessionais, no sentido tradicional do termo, com aulas obrigatórias de espiritismo. A tendência mais forte, mesmo entre os conservadores, é assumir uma posição de respeito à pluralidade religiosa. A pluralidade étnica e a integração da mulher também se inserem neste contexto.

Um exemplo antigo dessa postura está em Anália Franco (1853-1919), espírita, feminista, abolicionista e republicana. Tendo fundado mais de 100 lares para abrigar crianças carentes, dando abrigo, educação e profissionalização aos alunos e às suas mães (muitas delas, mães solteiras, que só teriam a alternativa da prostituição), Anália foi elogiada pelo seu pluralismo, pelo senador Paulo Egídio, em 1903:

“Em um espaço inferior a um ano, esta senhora e a Associação que ela dirige fundaram no Estado e na capital e n’algumas cidades do interior 25 escolas e há 4 meses mais ou menos, essas 25 escolas tinham uma população escolar de 1000 crianças de ambos os sexos, de todas as origens e procedências. Ali estão juntos o turco, o judeu, o maometano, o católico, o cristão e o calvinista.” (Apud MONTEIRO, 1192:80)

Anália representa também outras características do engajamento educacional espírita:

logo após a lei de ventre livre, dedica-se a educar as crianças negras, que eram marginalizadas nas fazendas; depois, com grande escândalo social, promove a inserção das mulheres no mercado de trabalho, pregando a autonomia feminina, entre as mulheres que eram consideradas caídas, pelas rígidas convenções do período.

Seu contemporâneo, Eurípedes Barsanulfo, em pleno coração da católica e conservadora Minas Gerais, ao fundar seu Colégio Allan Kardec, também demonstra tais princípios, fazendo classes mistas e incluindo negros entre os professores e os alunos.

Outro exemplo é o do professor curitibano Ney Lobo (1919-) que, embora diretor de uma instituição mantida na época (décadas de 60 e 70) pela Federação Espírita do Paraná, propôs um estudo de religiões comparadas entre os alunos, devendo cada qual expor as idéias de sua própria religião. No caso de Ney Lobo, já em outro contexto político, destaca-se o fato de que, sendo ele militar, em plena ditadura, realiza uma educação para a democracia, criando a cidademirim, em que as crianças elegiam seus prefeitos.iv

A campanha pela defesa da escola pública

Muitos espíritas adotaram assim a postura de lançar-se às obras educacionais, sem esperar a ajuda do Estado, mas sem abandonar o princípio da gratuidade. Arranjaram soluções alternativas para a sustentação de suas escolas: Anália teve o apoio da Maçonaria e fez um grupo de música e teatro ambulante, com os alunos e alunas mais velhos, rodando o interior paulista, em busca de recursos. Eurípedes trabalhou com voluntariado. Tomás Novelino (1901- 2000), discípulo de ambos, fundou uma fábrica de sapatos, em Franca, cuja renda era toda destinada à manutenção de três escolas da Fundação Pestalozzi. Conseguiu com isso, relativa estabilidade financeira durante 50 anos, chegando a atender mais de 2000 crianças, com escola e alimentação.

Na década de 60, porém, quando se discutia no Brasil a problemática da escola pública, J. Herculano Pires (militante ardoroso da pedagogia espírita), retomando a tradição daqueles que fundaram a Liga de Ensino, na França, lidera uma campanha no meio espírita, apoiando a campanha nacional pela escola laica, gratuita e obrigatória.

No virar da década de 50 a 60, o Brasil estava tomado pelos debates acirrados entre aqueles que defendiam a escola pública laica, obrigatória e gratuita e aqueles que, em nome da liberdade de ensino, queriam mais amplos privilégios para as escolas particulares e confessionais. Desde 1948, estava em discussão a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e já tramitava no congresso a proposta inspirada em O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, (1932), quando um substitutivo apresentado por Carlos Lacerda veio provocar tremendas polêmicas em todo o país. Este substitutivo era acusado de favorecer o ensino particular em detrimento da escola pública e de conferir maior poder à Igreja Católica. Assim rezava um trecho do Manifesto em Defesa da Democratização Escolar, feito pelo Clube de Jornalistas Espíritas, (presidido por Herculano), e enviado ao Senado, depois da aprovação na Câmara do projeto combatido por grande parte dos educadores de renome no Brasil:
“Os princípios confusionistas do projeto aprovado, que mistificam o problema do ensino, misturando deveres do Estado, com interesses particulares, em evidente benefício de interesses confessionais — ainda mais nocivos do que aqueles, por implicarem coação de consciência — são simples resíduos do obscurantismo medieval.” (PIRES, 1961)v

Apesar da intensa Campanha, deflagrada em todo o país, de que os espíritas também tomaram parte, principalmente pela pena combativa de Herculano, a Lei aprovada trazia traços que favoreciam a iniciativa privada, conforme crítica de Anísio Teixeira: “As tendências que vão ser fortalecidas pela nova Lei serão as do desinteresse do poder público pela educação, do fortalecimento da iniciativa privada, da preferência pela educação ‘de classe’, da expansão da educação para os já educados…” (TEIXEIRA, 1999:270)

Herculano insiste. O Clube de Jornalistas Espíritas havia lançado, em 1960, a Associação Espírita de Defesa da Escola Pública. Em 62, envia um manifesto a todos os associados e à imprensa espírita e não-espírita, conclamando todos à resistência e à vigilância para que a escola pudesse ser um local de liberdade de consciência. Entre as metas propostas neste novo manifesto, lêem-se os seguintes itens:
“Luta incessante contra o ensino religioso nas escolas, por constituir instrumento de coação das maiorias religiosas contra as minorias, o elemento de condicionamento das consciências, conseqüentemente, de deformação do ensino e da educação; luta incessante contra as discriminações raciais, de cor, ideológicas e religiosas, nos estabelecimentos de ensino públicos e particulares, com denúncia e ação judicial nos casos concretos.” (PIRES, 1962).

Alguns anos mais tarde, Herculano defenderia uma posição, aparentemente em contradição com esse Manifesto:

“…não podemos ter Educação sem Religião, o sonho da Educação Laica não passou de resposta aos grandes equívocos do passado (…). O laicismo foi apenas um elemento histórico, inegavelmente necessário, mas que agora tem de ser substituído por um novo elemento. E qual seria essa novidade? Não, certamente, o restabelecimento das formas arcaicas e anacrônicas do ensino religioso sectário nas escolas. Isso seria um retrocesso e portanto uma negação de todas as grandes conquistas (…).
Reconhecendo que a Religião corresponde a uma exigência natural da condição humana e a uma exigência da consciência humana, e que pertence de maneira irrevogável ao campo do Conhecimento, devemos reconduzi-la à escola, mas desprovida da roupagem imprópria do sectarismo. Temos de introduzir nos currículos escolares, em todos os graus de ensino, a disciplina Religião ao lado da Ciência e da Filosofia.

Sua necessidade é inegável, pois sem atender aos reclamos do transcendente no homem não atingiremos os objetivos da paidéia grega: a educação completa do ser para o desenvolvimento integral e harmonioso de todas as suas possibilidades.” (PIRES, 1985: 41)

A contradição é apenas aparente. Num momento histórico em que se corria o risco de a escola recair novamente no domínio da confessionalidade majoritária, Herculano alinha-se entre os progressistas, em prol dos interesses da população brasileira, que não tivera acesso à educação, e em nome da liberdade de consciência, princípio máximo que o Espiritismo adota como linha de ação. Entretanto, quando propõe a pedagogia espírita como contribuição à mesma educação brasileira, alerta para a necessidade de recuperarmos a dimensão espiritual no homem num projeto pedagógico que possa realizá-lo integralmente. A sua atitude anterior de luta contra a imposição confessional revela que a atitude posterior de tomar a religiosidade de um ponto de vista mais amplo não tem uma intenção encoberta de homogeneizar a fé. O processo de recuperar a dimensão espiritual do homem para a educação deve ser preservado de qualquer dominação confessional, garantindo-se a liberdade de pensamento de professores e alunos. Assim, reencontra Herculano os pioneiros, a que se refe Laplantine. Exatamente nessa perspectiva começou o embrião da escola laica.

i Ver INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita: um projeto brasileiro e suas raízes histórico-filosóficas.
(tese de Doutorado) São Paulo, FEUSP, 2001. ii Laplantine indica também ligações de espíritas com movimentos operários, socialistas, anarquistas – de várias nuanças da esquerda da época. Assim como houve no Brasil e nos países latino-americanos inúmeros espíritas, como Herculano Pires, Humberto Mariotti, Manuel Porteiro e outros, que entendiam o espiritismo como proposta de transformação social, usando inclusive o instrumento da dialética (embora evidentemente não materialista) para fazer a leitura crítica da realidade. Isso tudo é importante para fazer balançar a idéia comumente aceita de que o espiritismo é uma doutrina conservadora. Muitas vezes, o movimento espírita assim se manifesta pelo caldo cultural em que criou raízes no Brasil, mas não pela própria essência da doutrina de Kardec. iii Esse igualitarismo encontra respaldo na doutrina da reencarnação. Podendo o espírito reencarnar-se ora homem, ora mulher, ora negro, ora branco, inserido em qualquer cultura, a essência humana não muda e não há diferenças intransponíveis entre as condições étnicas, sexuais ou culturais. Nem sempre a idéia da reencarnação é usada de forma semelhante. Basta lembrar as castas na Índia ou mesmo o conservadorismo social que certos espíritas que tendem a reforçar desigualdades pela justificativa da lei do carma. Mas isso não pertence intrinsecamente à idéia espírita e nem mesmo à idéia da trnasmigração das almas. O primeiro igualitário a se basear na reencarnação foi Pitágoras. Platão, também reencarnacionista, assume uma atitude contraditória: ao mesmo tempo em que reconhece por exemplo a capacidade da mulher em ser guerreira ou filósofa em sua República, propõe uma sociedade hierarquizada. iv

Essa experiência de Ney Lobo, no Instituo Lins de Vasconcellos, também foi analisada em minha tese, revelando seus aspectos inovadores.v  Villalobos confirma que “foi em São Paulo, em campanha que abrangeu todo o Estado e que de lá foi levada a outros pontos do país, que se organizou a resistência sistemática, incansável, ao projeto, e de onde partiram as maiores pressões no sentido de modificá-lo, pressões que quase lograram equilibrar — outro fato inédito — as que procediam de opositores de há muito organizados e muito mais poderosos. Professores de todos os níveis, estudantes, escritores, jornalistas, operários, representantes das minorias religiosas, homens de diferentes camadas sociais e graus de cultura, muitas vezes distantes em suas convicções morais e políticas, uniram-se ao movimento, meses a fio, quase dois anos…” (VILLALOBOS, 1969:151)

Bibliografia

COLOMBO, Cleusa B. Idéias sociais espíritas. São Paulo, Comenius, 1998.

COMENIUS, Johann Amos. Pampaedia. Heidelberg, Quelle & Meyer, 1965.

LAPLANTINE, François e AUBRÉE, Marion. La table, le livre et les Esprits -Naissance, évolution et actualité du mouvement social spirite entre France et Brésil. Paris. Ed. Lattès, 1990.

LOBO, Ney. A Cidade-Mirim, uma cidade-miniatura educativa. Curitiba, 2001. (inédito)

LOBO, Ney. Contribuições para um sistema de educação espírita. Curitiba, 2001. (inédito)

Manifesto em defesa da democratização escolar. O Clube dos Jornalistas Espíritas de São Paulo, 1961

Manifesto pela escola pública e laica. São Paulo, Associação Espírita de Defesa da Escola Pública, 8 de janeiro de 1962

MARIOTTI, Humberto. Parapsicologia e materialismo histórico. São Paulo, Edicel, 1983.

MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Anália Franco - A grande dama da educação brasileira. São Paulo, Editora Eldorado Espírita, 1992.

NOVELINO, Corina. Eurípedes, o homem e a missão. Araras, IDE, 1981.

PESTALOZZI, Johann Heinrich. Sämtliche Werke und Briefe. Kritische Ausgabe. Zurique, Orell Füssli, 1927-1980. Obras, Vol. I a XXVIII. Cartas, Vol. I a XIII.

PIRES, Herculano. Editorial. (in: Jornal “Mensagem”. São Paulo, I (4): setembro/1975.)

PIRES, J. Herculano. O centro espírita. São Paulo, Paidéia, 1980.

PIRES, J. Herculano. Pedagogia Espírita. São Paulo, Edicel, 1985.

PORTEIRO, Manuel S. Espiritismo dialéctico. Buenos Aires, Editorial Victor Hugo, 1960.

RIVAIL, H.-L.-D. Plan proposé pour l'amélioration de l'éducation publique. Paris, Dentu, 1828.

RIVAIL, H.-L.-D. Programme des études selon le plan d'instruction. Paris, chez l'auteur, 1838.

RIVAIL, H.-L.-D. Projet de réforme concernant les examens et les maisons d'éducation des jeunes personnes. Paris, chez l'auteur, 1847.

RIVAIL, H.-L.-D. Textos pedagógicos. Tradução Dora Incontri. São Paulo, Comenius, 1997.

TEIXEIRA, Anísio. Educação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1999.

VILLALOBOS, João Eduardo Rodriques. Diretrizes e Bases da Educação. Ensino e liberdade. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1969.

Acesse o site da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita: 
http://www.pedagogiaespirita.org.br/

ENDEREÇO ELETRÔNICO CONSULTADO:

http://www.pampedia.com.br/abpe/Artigos%20site/_ABPE_siteArtigos%20Espi%CC%81ritas%20Escola%20pu%CC%81blica.pdf