quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

OS QUATRO EVANGELHOS, DE ROUSTAING - UMA MISTIFICAÇÃO DESACREDITADA POR ALLAN KARDEC

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Fonte da imagem: http://pt.slideshare.net/luizalexrv/os-quatro-evangelhos-volume-1-jb-roustaing

Fábio José Lourenço Bezerra

Um excelente artigo, intitulado "Allan Kardec X Roustaing: A hora da verdade",  publicado no site O Blog dos Espíritas ( http://oblogdosespiritas.blogspot.com.br ) e de autoria do estudioso do Espiritismo Wilton Porto, esclarece-nos sobre a maior mistificação ocorrida no movimento espírita, originada nos tempos de Allan kardec e desacreditada pelo mesmo, mas que ainda hoje exerce influência nos meios espíritas. É a obra "Os Quatro Evangelhos", do advogado bordelense J. B. Roustaing, que, estranhamente, ainda continua sendo editada pela Federação Espírita Brasileira. Vamos ao artigo:

“É dever dos espíritas sinceros combater a mistificação roustainguista neste alvorecer da Era Espírita no Brasil. Ou arrancamos o joio da seara ou seremos coniventes na deturpação doutrinária que continua maliciosamente a ser feita. O Cristo agênere é a ridicularização do Espiritismo, que se transforma num processo de deturpação mitológica do Cristianismo. A doutrina do futuro nega-se a si mesma e mergulha nas trevas mentais do passado. O homem-espírita, vanguardeiro e esclarecido, converte-se no homem da era ante-cristã, no crente simplório das velhas mitologias” (José Herculano Pires).

No livro “Conscientização Espírita”, o espírita Gélio Lacerda da Silva faz implacáveis críticas aos “Quatro Evangelhos” ou “Revelação da Revelação” de autoria do francês J. B. Roustaing, obra publicada quase à mesma época dos livros codificados por Allan Kardec. A obra de Kardec é considerada o “Consolador” prometido por Cristo. Roustaing diz que os livros publicados por ele traz informações mais coerentes e estes é que formam os ensinamentos que traduzem o “Consolador”. O papel deste artigo é mostrar opiniões a respeito do assunto, a fim de que o leitor – principalmente o espírita – tire suas conclusões após outras leituras e profunda análise.

Em “O Verbo e a Carne” de José Herculano Pires e Júlio Abreu Filho, na parte “O Roustainguismo à Luz dos Textos”, José Herculano Pires contempla o leitor com uma inteligente análise da obra de Roustaing, a partir do prefácio desta, e como Gelásio, ele demonstra que “Os Quatro Evangelhos” é obra ditada por espíritos “das trevas” e não por espíritos de luz, com o acompanhamento de Lucas, João, Marcos e Mateus, além de Moisés, como afirmou Roustaing.

Como se não bastasse, o roustainguismo conta com o apoio irrestrito da Federação Espírita Brasileira (FEB), que edita e divulga a publicação de J. B. Roustaing, embora os seguidores deste não passem de 1% (um por cento) dos espíritas existentes.

Gélio disse no livro citado, que “Chico Xavier se relacionou com a FEB do jeito que ela gosta: deixou a critério da FEB selecionar os escritos mediúnicos. Chico e Emmanuel ficaram à mercê do ‘criterium’ da FEB roustainguista”.

O próprio Gélio explica o motivo de Chico e Emmanuel se deixarem envolver pela FEB: esta tem interesse em patrocinar o roustainguismo e aqueles, contam com a comodidade da publicação e divulgação das obras psicografadas por Chico Xavier. Isso também se vê com outros espíritas de renome, como Humberto de Campos-Espirito e Bezerra de Menezes. O último, hoje, já no mundo espiritual, voltou-se de tal forma para o kardecismo que criou a frase “é hora de kardequizar”, além de ter escrito páginas belíssimas e contundentes defendendo a obra de Allan Kardec.

A publicação de “O ROUSTAINGUISMO À LUZ DOS TEXTOS”, de José Herculano Pires, e CONSCIENTIZAÇÃO ESPÍRITA, de Gélio Lacerda da Silva, foram taxativas para se entender a publicação de Roustaing e por que os espiritistas devem seguir o exemplo de Bezerra de Menezes-Espírito, que hoje segue e defende com unhas e dentes a obra codificada por Allan Kardec, obra esta que afirma o cristo humano e não que este veio ao mundo com um corpo fluídico como diz Roustaing.

O Corpo Fluídico de Jesus

Um dos principais motivos da publicação de OS QUATRO EVANGELHOS é mostrar que Jesus possuía – na terra – um corpo fluídico e não com a matéria igual a nossa. Revela que Maria – mãe de Jesus – teve uma gravidez aparente como também o parto. Ou seja: gravidez, parto, amamentação não passaram de “ilusão”. “Tanto quanto na gravidez, Maria teve a ilusão no parto, na medida do que era necessário, a fim de que acreditasse, como devia acontecer, num nascimento real”. Meu Deus! Os Espíritos Superiores eram inocentes ou aqueles que ditaram a obra de Roustaing viram uma baita inocência em Roustaing? No tocante à amamentação não fora diferente – José Herculano Pires prova as aberrações, porque Roustaing diz ter sido também um ato ilusório, modificando-se o sangue, etc. e tal.

José Herculano Pires trata a mensagem de Roustaing de “ridícula”, “episódio lírico-burlesco”. Considera na mensagem desse contestador de Kardec “truques e passes de mágicos”. E pergunta: Como aceitar-se o papel de Jesus, sob a permissão, pelo menos, de Deus, nesse processo de trapaça espiritual em nome da verdade

Reencarnação

No tocante à reencarnação, Roustaing escreveu que os seres que decaíram podem renascer como “criptógamos carnudos”, que são “criaturas estranhas, em forma de larva e lesma”, conforme estudo.

J. Herculano Pires assim se expressa: “São encarnações de espíritos humanos que haviam atingido alta evolução sem passar pela encarnação humana. Depois de desenvolverem a razão em alto grau e de haverem colaborado com Deus nos processos de criação, chegando mesmo a orientar criaturas humanas, voltam à condição de criptógamos carnudos”. E atira o escritor: “Invenção absurda e tola. E tanta gente a defender essas bobagens dentro do Espiritismo”!

Quem conhece o mínimo de espiritismo é cônscio de que a evolução espiritual é “irreversível”, que o espírito humanizado não pode regredir ao plano animal(irracional). Roustaing, com a assinatura da FEB, quer “ridicularizar” o Espiritismo para deste afastar as pessoas de bom senso, com revela J. Herculano Pires.

[...]Roustainguismo no Brasil

Resumirei o máximo – darei tópicos sobre o assunto. Acredito, no entanto, que será suficiente para se entender.

Formação religiosa é o ponto de partida, tendo a formação racial e o período medieval influenciado no desenvolvimento brasileiro. O roustainguismo chegou ao Brasil num momento crítico da nossa cultura, com infiltrações européias. Nesse período, nos chega o espiritismo, vindo da França. O roustainguismo, que se apresentava como integrado ao Espiritismo, tocou de perto a sensibilidade mística de alguns ex-católicos. A França era o centro da Civilização e Paris o cérebro do mundo. Roustaing, como advogado, era respeitado e a médium que lhe ajudava, Madame Collignon, pertencia a prestigiosa família de juristas. “Trazia um grande alívio aos espíritas místicos, quebrava a frieza racional da obra de Kardec e restituía ao Cristo a sua condição sobrenatural. Homens profundamente religiosos como Chico Xavier, Bezerra de Menezes, Antônio Luiz Sayão, Bitencouart Sampaio e outros, surgia como tábua de salvação, livrando-os do “racionalismo “ kardeciano. Roustaing era a volta ao maravilhoso, ao Cristo místico, divino no espírito e no corpo.

Mas o pensamento da grande maioria hoje é esse: “Em Roustaing impera, absoluto, sobre todos os seus ensinos, o sentimento religioso da antiguidade. – Em os Quatro Evangelhos as verdades são sempre contrariadas pelas mentiras, o natural é prejudicado pelo absurdo e o belo é sempre desfigurado pelo horrível. Jesus é fluidificado, purificado e até endeusado; mas também é ironizado, ridicularizado, deturpado e estupidificado”! “Roustaing é o anti-Kardec. Se Kardec é o bom senso, Roustaing é a falta de bom senso”. (José Herculano Pires)."

  Outro grande estudioso do Espiritismo, Sérgio Aleixo, no Capítulo II do seu livro "O Primado de Kardec", intitulado "A Postura de Kardec", nos traz importantes informações sobre a opinião do Codificador a respeito da obra de Roustaing. Vejamos o que ele escreveu:

"[...] Pode-se ler em Os Quatro Evangelhos de J. B. Roustaing — Resposta a seus Críticos e a seus Adversários [1883] que o próprio advogado de Bordéus admitiu ser a análise de Kardec, na Revista Espírita de junho de 1866, “o mais belo enterro de primeira classe que se pudera desejar” para a Revelação da Revelação. [1]

O parecer de Kardec julgou prolixo o livro que o advogado bordelês lhe remetera já desde sua apresentação original, em três volumes. O mestre disse: “A nosso ver, se a obra se tivesse limitado ao estritamente necessário, poderia ter sido reduzida a dois, ou mesmo a um só volume, com isso ganhando em popularidade”. E ainda assim a F.E.B. houve por bem publicá-la em quatro tomos. Prova do quanto valiam para alguns de seus diretores as sábias orientações de Allan Kardec.

Em face da crítica meridiana do mestre lionês, os volumes em exame foram considerados pela quase totalidade dos espíritas, no dizer do próprio Roustaing, “uma obra inútil”.[2] Este, o real motivo do descontrole do advogado bordelês e de seus discípulos ao acusarem o Codificador da Doutrina Espírita — pasmem — de autoritarismo, ostracismo, infalibilidade e até falsa sabedoria, ignorância.[3]

Em janeiro do ano de publicação da Resposta rustenista a seus críticos e adversários desencarnou a viúva de Kardec. Nem estas ilustres memórias os discípulos de Roustaing foram capazes de respeitar. O advogado bordelês partira já em 1879. Quatro anos antes. Enquanto entre os vivos estiveram Kardec e sua doce Gabi, aqueles dissidentes declarados não ousaram enfrentar-lhes o que teria sido a merecida réplica, que coube, por fim, ao Jornal Le Spiritisme, da União Espírita Francesa, com a edição de J.-B. Roustaing perante o Espiritismo — Resposta  a seus discípulos.

Esta réplica do Le Spiritisme se encontra sem tradução para o vernáculo porque, aos viajados rustenistas, não interessou tal publicação, a eles que se dizem tão interessados na grandeza da Causa Espírita. Que publiquem este histórico contraditório da União Espírita Francesa e mostrem ao menos esta nesga de amor à História do Espiritismo sem o vil desejo de reescrevê-la a favor de sua seita dissidente.

O debate sério era procedimento habitual do Codificador; ao contrário do que acontece nos meios paroquianos do movimento espírita, esquecidos do Kardec histórico. Os seguintes tópicos bem o lembram:

Nossa Revista será, assim, uma tribuna livre, em que a discussão jamais se afastará das normas da mais estrita conveniência. Numa palavra: discutiremos, mas não disputaremos.[4] [...] jamais daremos satisfação aos amantes do escândalo. Entretanto, há polêmica e polêmica; uma há, diante da qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos. [...] É a isso que chamamos polêmica útil, e o será sempre quando ocorrer entre pessoas sérias que se respeitam bastante para não se afastarem das conveniências. Podemos pensar de modo diverso sem, por isso, deixar de nos estimarmos.

 O Espiritismo quer ser claro para todos e não deixar aos seus futuros adeptos nenhum motivo para discussão de palavras. Por isso todos os pontos susceptíveis de interpretação serão elucidados sucessivamente.[6]

Por maior, mais bela e justa que seja uma ideia, é impossível que reúna, desde o princípio, todas as opiniões. Os conflitos que dela resultam são a consequência inevitável do movimento que se processa, e são mesmo necessários, para melhor fazer ressaltar a verdade. É também útil que eles surjam no começo, para que as ideias falsas sejam mais rapidamente desgastadas.[7]

Achar os espíritas em falta e em contradição com seus princípios seria uma boa sorte para os seus adversários; assim, vede como se empenham em acusar o Espiritismo de todas as aberrações e de todas as excentricidades pelas quais não poderia ser responsável. A doutrina não é ambígua em nenhuma de suas partes; é clara, precisa, categórica nos mínimos detalhes; só a ignorância e a má-fé podem enganar-se sobre o que ela aprova ou condena. É, pois, um dever de todos os espíritas sinceros e devotados repudiar e desaprovar abertamente, em seu nome, os abusos de todo gênero que pudessem comprometê-la, a fim de não lhes assumir a responsabilidade. Pactuar com os abusos seria acumpliciar-se com eles e fornecer armas aos adversários.[8]

Somos absolutos demais em nossas ideias? Somos um cabeça-dura com quem nada se pode fazer? Ah! meu Deus! cada um tem os seus pequenos defeitos; temos o de não pensar ora branco, ora preto; temos uma linha traçada e dela não nos desviaremos para agradar a quem quer que seja. É provável que sejamos assim até o fim.

[...] Falar dessas opiniões divergentes que, em última análise, se reduzem a algumas individualidades, e em parte alguma formam corpo, não será, talvez digam algumas pessoas, ligar a isto muita importância, assustar os adeptos fazendo-os crer em cisões mais profundas do que realmente o são? não é, também, fornecer armas aos inimigos do Espiritismo?

É precisamente para prevenir esses inconvenientes que disto falamos. Uma explicação clara e categórica, que reduz a questão ao seu justo valor, é mais adequada para assegurar do que para amedrontar os adeptos; eles sabem como proceder e aí encontram argumentos para a réplica.[9]

Em sua análise de Os Quatro Evangelhos,[10] Kardec mostrou a elegância de um verdadeiro missionário: lúcido, equilibrado, leal, mas firme, decidido, ciente da justeza de suas razões. O mestre deixou aos espíritos que ditaram a suposta Revelação da Revelação a responsabilidade pelas coisas “duvidosas” que disseram, como as adjetivou o próprio Codificador. Ainda assim, recomendou sua leitura aos conscienciosos.

Confiante na razão, Kardec não negou ao discernimento dos espíritas sérios a capacidade de rejeitar as teses rustenistas. Deixou claro, porém, que, “até mais ampla confirmação, não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita”. E já em 1868, no livro A Gênese, XV, 66, Kardec demonstrou que não houve endosso, e sim contradita.[11]

O Codificador desejava que tudo estivesse sob a mais intensa luz. Jamais adotou a providência inquisitorial da imposição de silêncio sobre o quer que fosse. Todavia, muitos espíritas, julgando-se mais cautelosos que o mestre o foi, afirmam não falarem de assuntos polêmicos porque não querem divulgar “o mal”.

 Mas o que falta à maioria destes tais é a segurança que só o conhecimento das razões doutrinárias lhes poderia proporcionar. Isto, entretanto, somente se consegue ao preço de intensos estudos, nunca ao baixíssimo valor de memorizações de frases de efeito, fundadas em retóricas piegas, de todo ignorantes do que seja realmente o sentimento do bem."

Referências e notas de rodapé deste capítulo:

"[1] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47.
 [2] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 47. 
[3] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, pp. 47 e 49. 
[4] Revista Espírita. Jan/1858. Introdução. 
[5] Revista Espírita. Nov/1858. Polêmica Espírita.
 [6] Revista Espírita. Jun/1863. Do Princípio da Não Retrogradação dos Espíritos. 
[7] O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução, II. 
[8] Revista Espírita. Jun/1865. Nova Tática dos Adversários do Espiritismo. 
[9] Revista Espírita. Abr/1866. O Espiritismo Independente. 
[10] Cf. Revista Espírita. Jun/1866. Os Evangelhos Explicados. [11] Cf. Cap. 8: Jesus Não Era Um Agênere. http://oprimadodekardec.blogspot.com.br/
[11] Cf. Capítulo 8: Jesus Não é Um Agênere"

Já no Capítulo IV da mesma obra, intitulado "As Advertências de Kardec a Roustaing e a Profecia de Erasto", Sérgio Aleixo escreveu:

[...] Na Revista Espírita de junho de 1863 há um artigo kardeciano sobre a não retrogradação dos espíritos. Este texto foi citado pelo advogado de Bordéus e submetido ao exame dos autores espirituais de Os Quatro Evangelhos no número 59 da obra. Os guias da pretendida Revelação da Revelação concluíram que os que pensam ser a encarnação uma necessidade geral “não foram esclarecidos, ou não refletiram bastante”.

Kardec diz em seu artigo de junho de 1863 que a ideia rustenista de que “os espíritos não teriam sido criados para encarnarem”, que “a encarnação seria tão somente o resultado de sua falta”, constitui um sistema “especioso à primeira vista”, e que “tal sistema cai pela mera consideração de que, se nenhum Espírito tivesse falido, não haveria homens na Terra, nem em outros mundos”.

Segundo o Codificador, o homem “é uma das engrenagens essenciais da criação” e, por esta razão, “Deus não podia subordinar a realização desta parte de sua obra à queda eventual de suas criaturas, a menos que contasse para tanto com um número sempre suficiente de culpados para fornecer operários aos mundos criados e por criar”. Para Kardec: “O bom-senso repele tal ideia”.

Mas a isto responderam os guias de Roustaing: “A última frase deve ser riscada”. E mesmo confessando que era “cedo” para resolver a “origem do Espírito” — em relação ao quê, aliás, Kardec já recomendara máxima cautela[1] —, os guias rustenistas exortaram a vaidade da sensitiva e do próprio jurisconsulto assim:

Utilizai-vos do que vos dizemos [sobre a origem das coisas], porquanto, ao tempo em que este vosso trabalho aparecer aos olhos de todos, os espíritos encarnados já se acharão mais dispostos a receber o que então [quando, em O Livro dos Espíritos, foi dito que o Espírito era criado simples e ignorante], e mesmo hoje [abril de 1863], tomariam por uma monstruosidade, ou por uma tolice ridícula.[2]

 Kardec reafirmou em seu artigo de junho de 1863 a doutrina de O Livro dos Espíritos e negou a tese rustenista que assegura que a reencarnação é ocasionada por castigo a espíritos faltosos. Isto prova irrefutavelmente que não é verdadeira a propaganda centenária da F.E.B., a qual sempre deu conta de que Kardec e Roustaing só divergiam quanto à natureza do corpo de Jesus, concordando em tudo mais.

O Codificador disse em alto e bom som que o estado primitivo do Espírito não é o de “inocência inteligente e raciocinada”. Estes termos utilizados pelo mestre lionês em junho de 1863 resumem com precisão as teses “especiosas” da Revelação da Revelação que, no entanto, somente seria publicada três anos depois. Se não, vejamos:

Atingindo o ponto de preparação para entrarem no reino humano, os espíritos se preparam, de fato, em mundos ad-hoc, para a vida espiritual consciente, independente e livre. É nesse momento que entram naquele estado de inocência e de ignorância. A vontade do soberano Senhor lhes dá a consciência de suas inocência e faculdades e, por conseguinte, de seus atos, consciência que produz o livre-arbítrio, a vida moral, a inteligência independente e capaz de raciocínio, a responsabilidade. Chegado deste modo à condição de Espírito formado, de Espírito pronto para ser humanizado se vier a falir, o Espírito se encontra num estado de inocência completa, tendo abandonado, com os seus últimos invólucros animais, os instintos oriundos das exigências da animalidade. [...] Os que se conservam puros também desenvolvem atividades e inteligência, a fim de progredirem, no estado fluídico, por meio dos esforços espirituais que necessitam fazer para, da fase de inocência e de ignorância, de infância e de instrução, chegarem, sem falir, à perfeição![3]

Esta flagrante coincidência de vocábulos e a citação, no número 59 de Os Quatro Evangelhos, da absoluta negativa de Kardec à tese da “queda” evidenciam que, de alguma sorte, já em 1863, o Codificador havia tomado ciência do material que estava sendo compilado por Roustaing desde dezembro de 1861. Ponderava o saudoso confrade Gélio Lacerda da Silva, ex-presidente da Federação Espírita do Estado do Espírito Santo:

Para entender como Kardec contestou, em 1863, um assunto que Roustaing veiculou no seu livro, publicado em 1866, tudo leva a crer que Roustaing, antes do seu livro vir a público, já divulgava o seu conteúdo. Foi em abril de 1863 que os espíritos mistificadores ditaram a Roustaing, através de Mme. Collignon, o ensino antidoutrinário de que o Espírito só será humanizado se vier a falir, conforme nota de rodapé da pág. 295, 1.º volume, 5.ª ed. de Os Quatro Evangelhos; portanto, não há dúvida de que Kardec, em junho de 1863, no seu referido artigo, se louvou na mensagem ditada a Roustaing em abril de 1863.[4]

E aduzo a isto um fato relevante. O Codificador, certa vez, publicou carta da médium Émilie Collignon encaminhando a si ditados espirituais. Acreditara a sensitiva que um desses comunicados era de um espírito que, antes, se apresentara a Kardec em substituição ao de Gérard de Codemberg. Rebatidos os argumentos da médium, o gênio lionês diz-lhe que o texto “apresenta todos os caracteres de uma comunicação apócrifa.”[5]

A seguir, Kardec publica mensagem do Espírito Bernardin à mesma sensitiva, na qual se apregoa na conta de “pensamento filosófico”, “cheio de sabedoria”, o suposto fato de que “somos uma essência criada pura, mas decaída; pertencemos a uma pátria onde tudo é pureza; culpados, fomos exilados por algum tempo, mas só por algum tempo”. Já era a doutrina rustenista da queda do espírito!

Em clara reparação, o mestre recomenda, entre parênteses, a leitura de seu aclamado artigo de janeiro de 1862, sobre a doutrina dos anjos decaídos, bem como, em sua observação final, adverte para o perigo de, em certas comunicações, espíritos não muito elevados emitirem opiniões pessoais, que refletem apenas sistemas e ideias nem sempre justos acerca dos homens e das coisas. Segundo Kardec:

Publicadas sem corretivo, essas ideias falsas apenas lançarão descrédito sobre o Espiritismo, fornecerão armas aos seus inimigos e semearão a dúvida e a incerteza entre os neófitos. Com os comentários e as explicações dados a propósito, o próprio mal por vezes se torna instrutivo. Sem isto poderiam responsabilizar a doutrina por todas as utopias enunciadas por certos espíritos mais orgulhosos que lógicos. Se o Espiritismo pudesse ser retardado em sua marcha, não seria pelos ataques abertos de seus inimigos declarados, mas pelo zelo irrefletido dos amigos imprudentes. Não se trata, pois, de fazer coletâneas indigestas, onde tudo se acha amontoado confusamente e cujo menor inconveniente seria aborrecer o leitor; é preciso evitar com cuidado tudo quanto possa falsear a opinião sobre o Espiritismo. Ora, tudo isto exige um trabalho que justifica a demora de tais publicações.[6]

A situação não era de todo boa para a médium, que já estava recebendo a pretensa Revelação da Revelação desde de dezembro de 1861, o que se estenderia até maio de 1865,[7] e em clima, agora, quem sabe, de provável melindre, em função destes pareceres desfavoráveis de Kardec. Anote o estudioso que o mestre lionês fala, em sua observação, sobre “espíritos mais orgulhosos que lógicos”, “zelo irrefletido dos amigos imprudentes” e “coletâneas indigestas, onde tudo se acha amontoado confusamente e cujo menor inconveniente seria aborrecer o leitor”. Não resta dúvida! O material rustenista foi enviado a Kardec já em 1862, mas o mestre logo lhe percebeu as inconsistências e perigos.

Roustaing, portanto, pôde contar com a prévia advertência do Codificador, que se dignou até poupá-lo do ridículo, dada sua distinção social, não lhe mencionando o nome naquele artigo de junho de 1863, sobre a não retrogradação dos espíritos. Elegante, mas firme, Kardec definiu a tese rustenista da queda como “um sistema que tem algo de especioso à primeira vista”, argumentado da forma que já destaquei de início.

O jurisconsulto bordelês, portanto, deveria ter acatado o entendimento do seu “muito honrado chefe Espírita”. Foi dada a Roustaing a oportunidade de desistir daquele trabalho, todavia não o interrompeu; na certa, por orgulho ferido. Um ex-presidente da Ordem dos Advogados, membro do Tribunal Imperial de Bordéus, a ser “desacatado” por um professor lionês radicado em Paris. Não, isto não podia ser, ainda mesmo que se tratasse de um autor pedagógico aclamado.

A médium Collignon e o advogado Roustaing. Ambos em situação de evidente mágoa por não haverem obtido de Kardec o respaldo que ambicionavam para seus trabalhos mediúnicos. Combinação explosiva que gerou o primeiro cisma no movimento espírita, cujos ecos, infelizmente, se podem ouvir ainda.

Não bastassem estas advertências de Kardec, espíritos orientadores haviam expedido alertas a respeito de um ataque de entidades mistificadoras na cidade de Bordéus. Durante a sessão geral lá ocorrida a 14 de outubro de 1861, Kardec leu, após o seu discurso, uma epístola de Erasto aos espíritas daquela localidade. [8]

Em voz um tanto mais severa, o amigo espiritual da codificação kardeciana assegurou ser necessário premunir os espíritas bordeleses contra um perigo que era seu dever lhes assinalar. Erasto avisou-os, então, do iminente assalto de uma turba de espíritos enganadores, cuja finalidade seria fomentar a cisão, a divisão, e levar a uma ruptura por todos os títulos lamentável. Repetindo o que os próprios guias espirituais do movimento em Bordéus disseram aos espíritas daquela cidade, Erasto esclareceu que haveria dois tipos de mistificadores no ataque. Um tipo viria com combinações abertamente hostis aos ensinos dos legítimos missionários do Espírito de Verdade, este, o presidente da regeneração planetária e guia pessoal de Kardec e do Espiritismo. Outro tipo de mistificadores, porém, apresentar-se-ia com dissertações sabiamente combinadas, nas quais, graças a tiradas piedosas, insinuariam a heresia ou algum princípio dissolvente.

Roustaing tomou conhecimento da epístola por terceiros? Ou, como adeptos seus afirmam hoje sem provas, esteve presente à sessão geral? De qualquer forma, não foi por falta de mais este aviso que cometeu o erro de publicar sua pretensa Revelação da Revelação, cujos ditados começariam a aparecer já em dezembro daquele ano, dois meses depois da sessão geral, insinuando exatamente a heresia gnóstico-docetista do Jesus fluídico e o princípio dissolvente da reencarnação como resultado de uma suposta queda, espécie de falência, verdadeira retrogradação que, segundo os guias rustenistas, seria aplicável até a espíritos com responsabilidades planetárias.[9]

Tudo se deu tal qual a predição. Foi um vaticínio de Erasto; na ocasião, mensageiro do Espírito de Verdade; este último, aliás, alguns espíritos ligados à Igreja dos primeiros tempos já haviam identificado como Jesus, em casa do Sr. Roustaing e do Sr. Sabo, a quem Kardec recomendou o primeiro, para que se iniciasse no Espiritismo. Ao lado do mal, vê-se que Deus pusera o remédio, mas não foi usado.[10]

A nomenclatura criada por Kardec — a palavra Espiritismo, inclusive — estava em toda a suposta Revelação da Revelação, mesmo no título: “Espiritismo cristão”. Como se nunca fora dito por Kardec: “O ponto essencial é que o ensinamento dos espíritos é eminentemente cristão: ele se apoia na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, no livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo, e portanto não é antirreligioso”. [11]

O fato é que Roustaing, infelizmente, se apoderou do nome e dos termos de uma doutrina cuja codificação nunca lhe coube. Além disto, nem ele nem seus discípulos jamais demonstraram em quê, afinal de contas, a tese basilar de sua “escola” se distingue da antiga tese dos gnósticos docetistas. No dizer autorizado de E. Pagels, a antiga seita postulava que “Jesus não era um ser humano, e sim um ser espiritual que se adaptara à percepção humana”[12], ou seja, conforme no Espiritismo se diz: um agênere.

Não se trata, claro, de o agênere desenvolver percepção física, mas, isto sim, de adaptar-se à percepção humana, isto é, de terceiros, a fim de que o possam notar, mesmo desencarnado; tanto assim, que os rustenistas apregoavam que Jesus não tinha “corpo material humano, sujeito à morte”, que “não podia sofrer segundo o nosso modo de entender material” e que — pasmem — “não morreu efetivamente no Gólgota”[13]. Oras! Diz o Espiritismo mui contundentemente:

[...] o Espírito que não tem corpo material não pode experimentar os sofrimentos que são o resultado da alteração da matéria, de onde também é forçoso concluir que, se Jesus sofreu materialmente, do que não se pode duvidar, é porque tinha um corpo material de natureza semelhante à dos corpos de toda a gente.[14]

Acresça-se a isso o flagrante de que, para o rustenismo, na prática, a carne humana é mesmo um efeito “do mal”; apenas a assumem os espíritos que são punidos por faltas cometidas no “estado fluídico”. E o docetismo, segundo Pastorino, entendia exatamente isto: “[...] tudo o que é material é imperfeito e impuro, pois é obra do Princípio do Mal; como Jesus apresentara o Princípio do Bem, o Pai, não podia ter-se submetido ao Princípio do Mal e, portanto, não poderia ter tido corpo físico carnal”[15].

De fato, neste texto de Os Quatro Evangelhos, dentre outros, pode-se constatar o horror dos guias docetistas ao corpo humano, vinculando-o à “lama”, ao “sofrimento”, à “falibilidade”; tornando-o efeito inerente à condição de “culpado”: Maior ainda era a diferença entre esse corpo de Jesus e os vossos corpos de lama. [...] não o esqueçais: todo aquele que reveste a carne e sofre, como vós, a encarnação material humana é falível. Jesus era demasiadamente puro para vestir a libré do culpado. Sua natureza espiritual era incompatível com a encarnação material, tal como a sofreis. (Vol. I, n. 14.)

Possível seria concluir então, com os guias rustenistas, que Jesus não cometeu imperfeições morais quando esteve na Terra não só porque nunca as praticara nos planos do Espírito, mas também porque não estava revestido da carne humana. A instrução 625 de O Livro dos Espíritos caducaria.

Sim, pois que valor possuiria para nós o guia e o modelo de uma perfeição que lhe foi conferida por processo evolutivo diferente daquele em que nos encontramos? Seria um guia errado, um modelo errado para uma humanidade errada, porque nada saberia de nossa vida terrestre, com a qual sua pureza sempre teria sido incompatível.

E mais: Jesus teria mentido quando disse a Nicodemos: “Falo do que sei; dou testemunho do que vi”, porquanto nada conheceria nem nada teria visto acerca da nossa experiência humana. O rustenismo, por estas e outras, é um insulto à autoridade moral e espiritual do Mestre de Nazaré, a despeito de supor exaltá-la.

Referências e notas de rodapé deste capítulo:

"[1] “São essas opiniões pessoais que os espíritos orgulhosos nos dão como verdades absolutas. É sobretudo a respeito do que deve permanecer oculto, como o futuro e o princípio das coisas, que eles mais insistem, a fim de darem a impressão de que conhecem os segredos de Deus. E é também sobre esses pontos que há mais contradições.” (O Livro dos Médiuns, 300.) 
[2] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, n. 56. F.E.B, 5.ª ed., 1971, p. 295. Entre colchetes, palavras minhas. 
[3] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, ns. 56 e 59. 
[4] Conscientização Espírita. Do Princípio da Não Retrogradação dos Espíritos. 
[5] Revista Espírita. Jun/1862. Princípio Vital das Sociedades Espíritas. 
[6] Revista Espírita. Jun/1862. Ensinos e Dissertações Espíritas. O Espiritismo Filosófico. Bordeaux, 4 de abril de 1862. Médium: Sra. Collignon. Observação [de Kardec]. 
[7] Cf. Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 5.ª ed., 1971, pp. 64 e 66. 
[8] Revista Espírita. Nov/1861. Primeira Epístola de Erasto aos Espíritas de Bordéus. 
[9] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, n. 59. F.E.B, 5.ª ed., 1971, p. 325-326. Cf. Cap. 14: Estranhezas do Ensino Rustenista. 
[10] Cf. Revista Espírita. Jun/1861. Correspondência. 
[11] O Livro dos Espíritos, 222. 
[12] Os Evangelhos Gnósticos, IV. 
[13] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 59. 
[14] KARDEC, Allan. A Gênese, XV, 65. [15] Sabedoria do Evangelho. Vol. 3. Jesus Anda Sobre a Água. http://oprimadodekardec.blogspot.com.br"

ENDEREÇO ELETRÔNICO CONSULTADO:

http://oblogdosespiritas.blogspot.com.br/2010/02/allan-kardec-x-roustaing-hora-da.html

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

ALEIXO, Sérgio. O primado de Kardec. ADE-RJ.




Um comentário:

  1. Eu só queria saber o que foi feito do corpo de Jesus. Acabei lendo tanta coisa que fiquei perplexa. Nunca tinha ouvido falar desse Roustaing

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