sexta-feira, 4 de maio de 2018

DECODIFICANDO O LIVRO DOS ESPÍRITOS - POR GUSTAVO DARÉ E VITAL CRUVINEL FERREIRA

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Fonte da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=-YqAemqeWLQ 

DECODIFICANDO O LIVRO DOS ESPÍRITOS

Gustavo Leopoldo Rodrigues Daré* e Vital Cruvinel Ferreira* 
* Membros da “Rede de Pesquisas Espíritas”. 
Autores do blog http://decodificando-livro-espiritos.blogspot.com.br/ 

RESUMO

Há grande discordância entre os espíritas brasileiros sobre qual foi a metodologia científica de Allan Kardec. A forma peculiar com que foi reconstruído O Livro dos Espíritos na sua segunda edição de 1860 oferece oportunidade impar de colher informações capazes de trazer luzes sobre esta temática conflituosa no Espiritismo Brasileiro. Através de métodos quantitativos e qualitativos de comparação de textos, identificamos um rico processo de reorganização do conhecimento, onde o conteúdo é preservado em detrimento da autoria textual. O método kardequiano apreendido neste trabalho oferece fundamentos que o aproxima das metodologias de análise de conteúdo e propõe uma solução pragmática para explicar a convivência da ciência com a filosofia na definição kardequiana de Espiritismo.

INTRODUÇÃO

Allan Kardec defendeu a tese do Espiritismo ser resultado da revelação dos Espíritos e do esforço científico e filosófico do homem. No prólogo de O Que é o Espiritismo sentencia “O Espiritismo é, ao mesmo tempo, ciência experimental e doutrina filosófica”, e finaliza “O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal” (1). Devido a grande especialização por que passou a Ciência nos últimos 150 anos, o conceito de algo que seja ao mesmo tempo Ciência e Filosofia é confuso e sem parâmetros de analogia no cotidiano contemporâneo.

Allan Kardec defendeu que a metodologia científica espírita deveria ser diferente da metodologia das Ciências Naturais de sua época: “As ciências vulgares se apóiam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular à vontade; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências que tem vontade própria e que nos provam a todo instante não se acharem subordinadas ao nosso capricho. As observações, portanto, não podem ser feitas da mesma maneira; requerem condições especiais e outro ponto de partida”(2). Durante o século XX tivemos grande avanço das ciências em direção as problemáticas do espírito humano, com a sistematização científica da antropologia, da sociologia e da psicologia. Será que nos dias atuais Kardec elaboraria a mesma assertiva? A metodologia kardequiana guarda alguma relação com as metodologias das ciências humanas? Estas afirmativas de Kardec ainda geram conflitos entre os espíritas atuais devido às formas diferentes com que se analisa a amplitude metodológica científica atual.

Allan Kardec ainda defendeu um outro complicador para a metodologia espírita: sua natureza divina. “Por sua natureza, a revelação espírita possui um duplo caráter: ela participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica... Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é que sua origem é divina, que a iniciativa pertence aos Espíritos e que a sua elaboração é o resultado do trabalho do homem” (3). Este argumento distancia-se ainda mais das concepções dominantes contemporâneas de Ciência independente do fenômeno místico e divino. Ao mesmo tempo, forneceu argumentos para os embates entre os espíritas defensores da natureza divina da revelação espírita e os defensores de sua natureza humano-científica.

No Brasil não houve, até hoje, nenhuma ampla e conclusiva discussão sobre a epistemologia kardequiana, nem vivência de sua prática metodológica. A pequena tradição científica brasileira se reflete no movimento espírita, com pequenas e isoladas iniciativas científicas ao longo destes 150 anos. Esta pequena vivência científica favoreceu as características do Espiritismo brasileiro atual, no qual a atividade científica não está organizada e seus princípios práticos e teóricos não são consensuais.

Descrever a metodologia científica kardequiana é questão conflituosa dentro do pensamento espírita contemporâneo. Mesmo nos textos mais detalhados (4), as descrições do próprio Kardec são imprecisas para os padrões atuais de rigor científico, favorecendo discussões intermináveis.

A ausência de anotações do processo de elaboração dos livros kardequianos e de seus dados coletados, dificulta compreender o modus operantis da pesquisa de Kardec. Entre os materiais acessíveis na atualidade, O Livro dos Espíritos destaca-se por suas peculiaridades: representa a obra fundamental do pensamento espírita, é o primeiro livro de Kardec e sofreu mudanças estruturais importantes entre a primeira edição de 1857 e a segunda edição de 1860. A nossa hipótese de trabalho foi de que através da identificação detalhada das diferenças entre estas duas edições, e a compreensão de como se operou esta mudança, será possível inferir a metodologia de construção do conhecimento filosófico-científico kardequiano.

OBJETIVOS

Analisar as diferenças estruturais e conceituais entre a primeira e a segunda edição d’O Livro dos Espíritos.

Descrever o método kardequiano de construção da segunda edição d’O Livro dos Espíritos.

METODOLOGIA

Material: 

Foram utilizados os seguintes livros: 

1) Primeira edição d’O Livro dos Espíritos (1857): original em francês disponível na internet e tradução para o português de Canuto Abreu (1957) e de Wladymir Sanchez (primeira parte “Doutrina Espírita”, de 2004).

2) Segunda edição d’O Livro dos Espíritos (1860): original em francês disponível na internet e tradução para o português de Salvador Gentile, José Herculano Pires, Guillon Ribeiro e Evandro Noleto Bezerra.

3) Revistas Espíritas 1858, 1859, 1860: original em francês disponível na internet e tradução para o português de Evandro Noleto Bezerra.

Método: 

Foram utilizadas ferramentas quantitativas de análise de texto e inferências qualitativas na análise do conteúdo. Algumas análises foram feitas independentemente pelos dois autores e outras em parceira. O projeto de trabalho não se fundamentou em nenhum referencial teórico específico, apesar de relacionar-se com estratégias quantitativas de Análise de Conteúdo, e seu objeto de estudo aproximar-se dos Estudos do Jornalismo Comparado e da Análise Literária.

O trabalho foi dividido em duas frentes:

a) Mapeamento das edições:

Na primeira etapa foram localizados na segunda edição os textos da primeira edição. Este trabalho foi realizado através da leitura cuidadosa das obras, e de recursos computacionais (editor de texto OpenOffice para palavras-chave e aplicativos de comparação de textos Notepad++ e DiffMerge). Este mapeamento possui dois níveis. No Mapeamento Superficial foram identificadas as perguntas da primeira edição presentes ou ausentes na segunda edição. No momento seguinte, durante o Mapeamento em Profundidade, correlacionaram-se todos os componentes dos diálogos dos livros (perguntas, respostas, comentários e enunciados).

Na segunda etapa classificou-se a intensidade de semelhanças/diferença do conteúdo e da linguagem dos textos, inferindo-se os motivos e conseqüências destas semelhanças e diferenças para as formulações do conhecimento espírita.

b) Processo de Elaboração dos Novos Conhecimentos.

A inferência da hipótese explicativa do processo de elaboração de novos conhecimentos dentro do método kardequiano submeteu-se a duas etapas de trabalho. 
Na primeira etapa agruparam-se os conteúdos das duas edições, classificando-os como conteúdos novos ou redundantes.

Na segunda etapa buscou-se identificar os artigos nas Revistas Espíritas de 1857 a 1860 que se relacionam com os novos conteúdos inseridos na segunda edição. Analisou-se a forma como textos destes artigos foram transferidos para a segunda edição, e os efeitos destes novos textos nos conceitos emergentes da obra, inferindo-se os motivos das escolhas feitas por Allan Kardec.

(ATENÇÃO: para ver os gráficos e tabelas deste estudo, remetemos o leitor ao endereço eletrônico original deste artigo - http://www.assepe.org.br/artigos/leo_Decodificando_OLE.pdf )

RESULTADOS

Da leitura inicial destacam-se as diferenças de organização das duas edições (Tabela 1). Das 915 perguntas apresentadas na primeira edição, Allan Kardec enumerou 501 perguntas, seguidas de uma quantidade variável de perguntas e respostas associadas a comentários/enunciados kardequianos. Definimos cada um destes blocos enumerados como “diálogos”, e não como habitualmente encontramos na literatura espírita como perguntas. Observa-se que da primeira para a segunda edição diminui a média de 1,8 perguntas / diálogo para 1,2 perguntas / diálogos. Nesta mudança dificultou a diferenciação do leitor habitual entre diálogos e perguntas.

Na primeira edição o Livro Primeiro “Doutrina Espírita” apresentava uma organização peculiar de duas colunas. “A primeira coluna contém as perguntas formuladas e as respostas textuais. A segunda encerra o enunciado da doutrina sob forma fluente... Uma tem a vantagem de mostrar de certa sorte a feição das entrevistas espíritas; ou tra a de permitir uma leitura seqüente”(5). O Segundo e Terceiro Livro da primeira edição apresentam a mesma organização da segunda edição, diálogos seguidos ou não de comentários de Kardec.
 O Livro Primeiro “Doutrina Espírita” é dividido na segunda edição nos dois primeiros Livros “Causas Primeiras” e “Mundo Espiritual ou dos Espíritos”, enquanto o Livro Segundo “Leis Morais” e o Livro Terceiro “Esperanças e Consolações” não sofreram alterações megaestruturais, exceto pela transferência do capítulo “Perfeição Moral” do último livro para o Livro “Leis Morais” (figura 1). Grande parte do capítulo X “Manifestações dos Espíritos” foi retirado da segunda edição e transferido para O Livro dos Médiuns. Mesmo assim, é o Livro Segundo da segunda edição que mais cresceu percentualmente (Figura 1) 
 O mapeamento superficial demonstrou que a sequência dos diálogos foi preservada parcialmente, tendo sofrido maior remodelação entre os diálogos 200 e 600, pertencentes ao Livro Segundo da segunda edição (Figura 2). Estes dados, conjuntamente com as descritas no parágrafo anterior, indicam que o Livro Segundo foi o que sofreu maior alteração da primeira para a segunda edição. 
O mapeamento em profundidade demonstrou que houve rearranjo dentro dos diálogos. Mesmo no Livro Terceiro “Leis Morais”, um dos mais conservados na segunda edição, houve grande reorganização dos diálogos. Apresentamos como caso-exemplo o mapeamento do capítulo VI “Lei de Destruição do Terceiro Livro da segunda edição. O mapeamento superficial demonstrou que o capítulo seguiu a tendência geral da segunda edição, onde apesar do aumento de diálogos, houve diminuição do número de perguntas para cada diálogo (diminuição de 12 para 6 perguntas internas). O aumento total de perguntas também acompanhou da exclusão de perguntas (Tabela 2). 
O mapeamento em profundidade apresenta intensa reorganização interna das perguntas e respostas. Foram conservadas mais as perguntas (23=52%) do que as respostas (11=25%). As estratégias utilizadas foram: extração ou adição de frases/expressões, substituição de expressões particulares, mudanças textuais, fusão de 2 respostas em uma única, adição na resposta da segunda edição de parte do comentário da primeira edição.

Abaixo exemplificamos o método de análise com a pergunta 728 da segunda edição:

728: “A destruição é uma lei da Natureza?” (idêntica a 357a) 
“É preciso que tudo se destrua para renascer e se regenerar (idêntica a resposta 357a excluindo-se a palavra “sim”), pois isso a que chamais destruição não passa de uma transformação (frase nova não presente na primeira edição), que tem por fim a renovação e a melhoria dos seres vivos (parte do comentário do diálogo 357).

Uma leitura direta da segunda edição não percebe-se que estamos diante de um “cocha de retalhos”. O que aparente ser uma pergunta única e uma resposta única, desvenda-se como um trabalho de fusão orquestrado por Kardec. 
As perguntas da segunda edição foram classificadas segundo o grau de semelhança com a primeira e segunda edição, utilizando classificação apresentada abaixo: 

0 = idêntico: as questões em ambas as edições são muito parecidas em relação a forma de elaboração das idéias. Ainda que haja alguma mudança no texto, não se observa uma intencionalidade em alterar as idéias contidas nas respostas.

1 = praticamente idêntico: as questões são as mesmas em relação ao fundo enquanto que na forma apresentam significativas diferenças. Estas diferenças podem ser um comentário ou explicação adicional, ou uma melhor elaboração literária. Porém o entendimento deve ser o mesmo. 

2 = pouco diferente: sem alterar significativamente o centro das idéias principais, há um acréscimo ou decréscimo de conteúdo conciliável.

3 = diferente: há alguma alteração na idéia principal que merece uma investigação mais detalhada.

4 = muito diferente: há uma explícita alteração das idéias, mas ainda é possível conciliá-las em termos lógicos.

5 = contraditório: a diferença é tão grande que não existe a possibilidade lógica de conciliá-las. Somente uma pode ser verdadeira.

Este trabalho é sintetizado no gráfico de freqüências da Figura 3. Apesar das mudanças significativas terem sido pequenas (soma dos graus 3 a 5 igual a 5%), elas analisam apenas os diálogos presentes na primeira edição, não classificando os diálogos adicionados na segunda edição. Devido a rigorosidade de revisão de Kardec, muitos das mudanças discretas ocorridas em grau 2 (13%) podem ser explicados pela necessidade de manter a coerência com o que foi efetivamente modificado, demonstrando o efeito filosófico de um princípio novo sobre os princípios deduzidos.

No mapeamento da Revista Espírita com a segunda edição d’O Livro dos Espíritos foi possível encontrar alguns texto que foram transferidos. Na tabela 4 apresentamos alguns resultados parciais deste mapeamento. Como exemplo textual apresentamos na tabela 5 dois exemplos de diálogo com alteração parcial na idéia principal (grau 4) e uma com proposta contrária (grau 5). Em alguns casos identificamos uma transferência textual de uma entrevista, em outros casos encontramos uma transferência do conteúdo, porém não textual.

Na segunda edição torna-se comum um estilo incomum na primeira edição: os ensaios de autoria de Kardec. Estes ensaios desenvolvem uma finalidade pedagógica de explicar e sintetizar os conteúdos debatidos nos diálogos que antecedem (Tabela 6). 
DISCUSSÃO 

Ao organizar as perguntas e resposta de O Livro dos Espíritos em diálogos, Kardec sugere uma divisão temática, no qual cada diálogo é uma unidade indivisível. Ao posicionarmo-nos como leitores aprendizes, esta mensagem organizacional do autor nos sugere estudarmos os conceitos do livro a cada diálogo e não a cada pergunta. Os comentários de Kardec posicionados sempre ao final dos diálogos, e nunca entre perguntas de um mesmo diálogo, reforça a unidade de estudo do diálogo. 
Conforme sugere a nota explicativa ao final do prolegômenos da primeira edição, as perguntas e respostas do Livro Primeiro “Doutrina Espírita” são cópias idênticas dos dados coletados diretamente das entrevistas mediúnicas. Apesar de pequena ressalva presente nesta própria nota, podemos considerar que a primeira edição representa mais fielmente o trabalho de campo de Kardec. A ressalva emerge no texto “conquanto o assunto versado em cada coluna seja o mesmo, encerram às vezes uma e outra pensamentos especiais que, quando não resultam propriamente de perguntas diretas, não constituem menos o fruto das lições dadas pelos espíritos”(5). A demonstração de que foram feitas reorganizações internas em perguntas e respostas na segunda edição sugere que a intenção kardequiana de apresentar ao leitor as entrevistas textualmente desenvolvidas é colocada em segundo plano, prevalecendo-se o próposito de “conferir à distribuição das matérias uma ordem muito mais metódica” (6). O objetivo pedagógico sobrepujou o objetivo científico.

O mapeamento superficial demonstrou que a maior aquisição de conhecimentos desenvolvidos por Kardec entre as duas edições d’O Livro dos Espíritos foram referentes aos temas do Livro Segundo “Mundo Espiritual ou dos Espíritos”. Desta forma, o restante do livro está fortemente relacionado aos trabalhos desenvolvidos até 1857, antes da fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Os trabalhos até 1857 são caracterizados pelo uso da cesta de bico e pelo pequeno número de médiuns, sendo os principais médiuns adolescentes (Srta. Japhet e Srtas Baudin): “Foi assim que mais de dez médiuns prestaram as sua assistência para esse trabalho” (7) e “esse ensinamento lhe foi ditado por intermediação de diversos médiuns escreventes e falantes (8).

Como demonstrado no mapeamento em profundidade do Capítulo VI “Lei de Destruição”, Kardec não respeita a integridade das entrevistas coletadas mediunicamente. A prioridade é a fidedignidade ao conteúdo e não ao texto. Algumas mudanças são pontuais, indicando que houve mudança de consenso, porém manteve-se o mesmo contexto. Estas mudanças tornam os diálogos da segunda edição um diálogo de muitas vozes. Não está claro porque Kardec transfere em algumas situações seu comentário pessoal da primeira edição para a posição de resposta para a segunda edição. Uma hipótese é que, apesar dos comentários na primeira edição serem de criação do autor, como mantinha a coerência com as idéias dos Espíritos, sua transferência para a posição de resposta pareceu-lhe ético, pois não feria o conteúdo apresentado pelos Espíritos. Este trabalho de fusão e reorganização desenvolvido por Kardec foi amplo e minucioso, tendo uma finalidade pedagógica de facilitar o aprendizado dos conceitos e princípios da doutrina desenvolvida no livro.

O mapeamento da Revista Espírita com a segunda edição d’O Livro dos Espíritos identifica algumas entrevistas que serviram de fundamentos para as mudanças conceituais. Estas entrevistas mediúnicas são produtos de nova forma de trabalho de Kardec, que agora preside a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e recebe mensagens mediúnicas de todos os continentes. A identificação dos Espíritos autores de algumas respostas d’O Livro dos Espíritos nos remete ao questionamento sobre a crença da revelação espírita proveniente apenas de Espíritos definitivamente Superiores. Muitos dos Espíritos comunicantes na Revista Espírita são atualmente desconhecidos de nós.

O domínio teórico de Kardec sobre o livro cresceu da primeira para a segunda edição e repercutiu na força de sua intervenção na organização das entrevistas mediúnicas originais, como demonstrado pelo mapeamento em profundidade e também pelo aparecimento de ensaios pessoais. O intervalo de 3 anos entre as duas edições, 1857 e 1860, corresponde a um período fecundo de transformações na vida de Kardec, transformando-se do pedagogo Rivail para Kardec, o líder de uma nova doutrina espiritualista.

CONCLUSÃO

Houve um processo dinâmico na construção do conhecimento espírita nos primeiros anos de Espiritismo, possivelmente auxiliado pela ampliação da rede de grupos mediúnicos colaboradores, que partiu de aproximadamente 10 médiuns em 1857 para chegar a grupos espíritas espalhados, pelo menos, em 43 cidades de 16 países diferentes de 3 continentes (9). Este dinamismo é verificado na reconstrução da segunda edição d’O Livro dos Espíritos, com acréscimo de novos conteúdos e modificação de algumas idéias, na maioria das vezes, fundamentadas em comunicações mediúnicas publicadas nas Revistas Espíritas.

As mudanças estruturais da segunda edição indicam maior preocupação pedagógica em detrimento da publicação dos diálogos originalmente colhidos mediunicamente. Kardec, com grande desenvoltura, modifica respostas e perguntas, mantendo-se fiel, na maioria das vezes, mas não sempre, a textualidade das frases da primeira edição. Os conteúdos da segunda edição são discursos de várias vozes produzidas entre 1855 e 1860, e as respostas são montagens de fontes diferentes. Isto comprova a preocupação metodológica centrada no conteúdo e não na textualidade ou na autoria. A racionalidade das idéias é a linha mestra que alinhava os textos extraídos isoladamente. Este agrupamento de textos de vários Espíritos transmitidos por diferentes médiuns é que fornece ao Livro dos Espíritos a autoria múltipla.

Todo O Livro dos Espíritos representa um diálogo sobre conhecimento. O diálogo como processo tipicamente filosófico. Porém, apesar de se conhecer a autoria do entrevistador, o entrevistado é resultado de um trabalho exaustivo de campo. Um trabalho de coleta de diferentes respostas, suas comparações e encadeamentos lógicos, seguindo a capacidade de apreensão do conhecimento por Kardec. A força de uma mensagem não estava presa ao número de vezes com que a informação era repetida, mas na coerência com que este conteúdo se entrelaçava aos demais conteúdos obtidos.

No epílogo da primeira edição d’O Livro dos Espíritos, Allan Kardec explica que “a ciência espírita compreende duas partes: uma experimental sobre as manifestações físicas; outra filosófica, resultante das manifestações inteligentes”(10). A ciência desenvolvida por Kardec é uma ciência de interpretação de textos elaborados durante o estado de transe mediúnico. Kardec não se dedicou ao estudo experimental das manifestações físicas. O objetivo kardequiano foi conhecer as idéias e apreender a sabedoria dos Espíritos desencarnados, selecionando, pela coerência com as demais comunicações e com os conhecimentos humanos de sua época, quais os conteúdos mais confiáveis. O processo de coleta de mensagens e sua análise de conteúdo comparada é a metodologia científica. O conteúdo emergente deste trabalho é uma filosofia construída metodologicamente dentro de uma estratégia científica socialmente compartilhada por diferentes vozes, dependentes da capacidade do pesquisador em conciliar aparentes contradições.

BIBLIOGRAFIA

(1) Allan Kardec, O Que é o Espiritismo (1959), prólogo, tradução de Wallace Leal V. Rodrigues, editora LAKE, 26° edição, 2001. 
(2) Allan Kardec, O Livro dos Espíritos (1857), Introdução, tópico VII, tradução de Evandro Noleto Bezerra, editora FEB, 1° edição, 2007. 
(3) Allan Kardec, A Gênese, Capítulo 1, item 13, tradução de Victor Tollendal Pacheco, editora LAKE, 17° edição, 1994. 
(4) Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo (1863), Introdução, tópico II, tradução de José Herculano Pires, editora LAKE, 60° edição, 2005. 
(5) Allan Kardec, O Primeiro Livro dos Espírito de Allan Kardec (1857), NOTA após o Prolegômenos, tradução de Canuto Abreu, Companhia Editora Ismael, 1957. 
(6) Allan Kardec, O Livro dos Espíritos (1857), Aviso Sobre Esta Nova Edição, tradução de Evandro Noleto Bezerra, editora FEB, 1° edição, 2007. 
(7) Allan Kardec, Obras Póstumas, Minha Primeira Iniciação no Espiritismo, tradução de Salvador Gentile, editora IDE, 1993. 
(8) Allan Kardec, O Primeiro Livro dos Espírito de Allan Kardec (1857), Nota XVII, tradução de Canuto Abreu, Companhia Editora Ismael, 1957. 
(9) Washington Luiz Nogueira Fernandes, Allan Kardec e os Mil Núcleos Espíritas de Todo o Mundo com os Quais se Correspondia em 1864, A Revista Espírita, Outubro 2004, ou no site www.consejoespirita.com/larevistaespirita/mil.htm. 
(10) Allan Kardec, O Primeiro Livro dos Espírito de Allan Kardec (1857), Epílogo, tradução de Canuto Abreu, Companhia Editora Ismael, 1957. 

ENDEREÇO ELETRÔNICO ORIGINAL DESTE ARTIGO:

http://www.assepe.org.br/artigos/leo_Decodificando_OLE.pdf

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